segunda-feira, 7 de novembro de 2016

nós sabemos
todo e qualquer
sentimento
o amplo e o pequeno
estão sendo
movidos
por uma engrenagem
invisível
que apareceu
quando nos conhecemos
só começou a girar
quando rompemos
a continuação
de outra vida
e o início da próxima
foi esse espaço
de tempo

venha me buscar

quinta-feira, 27 de outubro de 2016

não sei como
pode ainda me parecer
cômodo
comprar o pão
no posto
sentar ao seu lado
sempre indisposto
enquanto mastigo
o trigo sem gosto
síndrome de estocolmo
falta do meu próprio
desgosto
é que talvez assim
nenhum sofrimento
me fosse mais imposto
já conhecia
o caminho da dor
não queria conhecer
outros
nesses passos
perdidos
até aqui
ainda não consegui
olhar no meu próprio olho
tentei segurar
outra mão
mas foi vão
o esforço
tentei outra direção
mas meus pés
pesaram no chão
e eu empaquei
sem reação
tremendo de medo
do novo

sexta-feira, 30 de setembro de 2016

eu também
faço amor como um bicho
arisco
arranho
quando percebo o risco
me escondo de olhares
vividos
mas me assanho
com cheiro de carne viva
não resisto
se alisa
arrepio o pelo
mas dependo
da mão que afaga
égua braba
cavalgo
só depois de domada
mordo
quando encurralada
brinco
se bem alimentada
gemo
como as escandalosas gatas
tremo
depois de uma boa gozada

quinta-feira, 29 de setembro de 2016

Você faz amor como um bicho
E eu gosto disso
Quando me rodeia com olhar felino
Cheira meus hormônios
E ataca me lambendo
Feito um cachorro sem dono
Me rói até o osso
Me vira de quatro
Disposto
Tua respiração parece uivo de lobo
Tuas mãos
Garras de gavião
Se enfincam e me agarram
Até me tirar do chão
Sou presa fácil
Você como um réptil
Me ataca por baixo
Envenena
E me mata de tesão

Meu olho

Tenho um terceiro olho. Ele fica do lado de dentro. Diferente dos externos, não disfarça o que vê. E diz, meu olho que sente e não finge, também diz. É ele que te escreve, é ele que te fala. Sensível demais para o silêncio, meu terceiro olho grita. Meu terceiro olho existe. Meu terceiro olho é de fato. Não está nas costas, nuca, testa ou antebraço. Não se pode ver esse meu olho extra. Estrangeiro à vida externa, enxerga só o que me toca sem o tato. Nunca se cala... Aperta as pálpebras, depois arregala e chora sem vergonha. Escorre lágrimas de tristeza, felicidade, carência, carinho, tesão. O olho mágico, bonito e confuso, se deságua no meu mundo caleidoscópico, se perde em cores, dores, amores e ópio. Meu terceiro, bastardo olho, faz cegamente poesia o tempo todo.

sexta-feira, 23 de setembro de 2016

Ele me disse satélite natural da terra
Sou
Não que seja ele quem me ilumina
Existem tantos sóis por aí...
Todos grudados ao meu lado
Enquanto permaneço indecifrável
No topo das cabeças
Esperando que realmente acordem
E que um dia cansem
De toda vez me alcançar
Cravar sua bandeira
E comemorar me usando
Como terra de desafios
Sou lisa aos olhos que me olham
Mas se realmente curiosos
Enxergam minhas crateras
Minhas sinuosas linhas
O que faço aqui
Também não sei
Se cresço, se minguo
Se encho de luz o desespero
Do ser que precisa de qualquer explicação
Para cada rumo de sua vida
Nem eu sei do meu mistério
Só aceito minha condição
Que os lobos uivem para mim
Que as bruxas dancem ao meu redor
Que os apaixonados me façam motivo
Sigo uma reticência no céu
Um solitária perdida

quarta-feira, 21 de setembro de 2016

A culpa não é sua

Eu preciso falar. Porque há dez anos eu guardo isso. Há dez anos eu nunca soube o que fazer, nem o que dizer.
Só que depois de apontar o dedo na sua cara e te dizer que a culpa é sua, ver você não esboçar nenhum tipo de reação me doeu mais que o meu sofrimento silencioso durante dez longos anos. Ver seus olhos paralisados e secos olhando pra mim enquanto eu externalizava toda minha raiva, me deu a dimensão do tamanho do seu desespero. Seu desespero é seco, é solitário, foi engolido e domado pra nunca mais sair daí. E isso também me desespera.
Você transformou toda sua dor em uma pedra imensa que você carrega sem reclamar. Por que? Eu grito há dez anos dentro de mim: POR QUE? Me dói não saber porque. E fica fácil dizer que a culpa é sua, porque é difícil admitir que não é. Nunca foi. A culpa não é sua. Não foi sua... Nao foi sua naquele dia em que eu entendi o que te machucava, não foi sua em todos os momentos constantes de tensão, de espera pela tensão, de resistência da tensão, não foi sua nos dias sistemáticos de abuso físico e psicológico, não foi sua nas descobertas ruins, não foi sua em cada humilhação, não foi sua nas dores físicas que tem sido geradas pelo estresse absoluto de viver em um cárcere de sentimento, dependência e submissão. A culpa nunca foi e nem será sua.
Só que fica difícil pra mim. Lembro que quando eu tinha um sete anos, você me disse que queria ser como eu. Eu nunca esqueci disso... Era pra você ser minha fortaleza, mas você é que me achava forte. O caso é que me fiz forte quando notei que faltava algo dentro de você, quando aos cinco anos você me disse que tinha saudade da sua mãe e eu respondi: mas e eu?, e você respondeu que um dia eu iria entender, e eu entendi, porque também sinto saudade da minha.
É difícil, porque eu, dentro desse inexplicável condicionamento a suportar com doçura, a encarar com coragem, eu pude suportar tudo que te feriu até hoje, mas talvez a pequena não suporte. Por favor, não a transforme na sua dor. Você não vê? Você não pode sentir que todo grito, todo berro, toda lágrima e toda rispidez dela são um pedido de socorro? Ela só quer ser amada. Mesmo em meio ao caos uma criança só precisa ser amada. Eu quero pra ela todo amor que eu tive, e se o amor que eu tive foi infinito, por que o dela não pode ser? Pare de mostrar pra ela seus espinhos, você ainda é uma flor. Deixa ela te tocar, deixa ela ver suas pétalas, nós duas somos tudo o que mais te contempla no mundo.
E eu ainda estou aqui. E não, eu não acho que a culpa seja sua. Se permita a enxergar de outro jeito, se permita a lembrar de quem você era, se permita a pensar no que você ainda por ser.
Por você, por nós.
Você sempre foi tudo que eu mais admirei, eu contava pra todos os coleguinhas que sua risada era a mais alta do bairro, porque eu amava ouvir você rir. Não ouço mais, não ouço mais porque não acontece com frequência, não ouço mais porque com dezesseis anos eu me afastei pra não ter que assistir de camarote você morrer aos poucos sem saber o quão importante e forte você é. Só que eu continuo aqui, eu estive aqui nesses dez anos esperando o grande dia que esses seus olhos secos iriam brilhar de novo e você iria segurar na minha mão e voltar pra superfície. Você é muito mais que isso, muito mais. Sempre foi. Você não precisa disso, ninguém precisa disso, nenhuma mulher precisa disso. Eu só queria dizer que eu estou aqui, pode me chamar quando quiser, nós vamos viver no mundo que eu passei a infância inteira sonhando, eu, você e algo mais em que naquela idade eu não sabia o que era. Talvez fosse o amor, talvez fosse o amor personificado. Eu, você e ela.

quinta-feira, 1 de setembro de 2016

doce

menina, você é doce. doce tipo doce mesmo. aquele doce suave, macio, bom de sentir o gosto... assim, tipo um veludo. doce de avelã. esse seu ar otimista faz a combinação perfeita com o teu sorriso calmo, fica tão... doce. olho pra você e vejo isso. só que quando toquei meus lábios nos seus, sei lá, já não senti mais isso. não é doce. aí ja não é veludo. aí é áspero, certeiro, aí já é rasgo, não é remendo, é corte, não curativo. seu beijo invande, você pede licença. timidamente ousada. eu pensei em você várias vezes no outro dia. você é assim, como o que você disse sobre o cantor brilhante... pode mudar o ambiente só com o som da sua voz.

sexta-feira, 19 de agosto de 2016

Sem Ana, Blues

Caio F. Abreu

Quando Ana me deixou - essa frase ficou na minha cabeça, de dois jeitos - e depois que Ana me deixou. Sei que não é exatamente uma frase, só um começo de frase, mas foi o que ficou na minha cabeça. Eu pensava assim: quando Ana me deixou - e essa não-continuação era a única espécie de não continuação que vinha. Entre aquele quando e aquele depois, não havia nada mais na minha cabeça nem na minha vida além do espaço em branco deixado pela ausência de Ana, embora eu pudesse preenchê-lo - esse espaço branco sem Ana - de muitas formas, tantas quantas quisesse, com palavras ou ações. Ou não-palavras e não-ações, porque o silêncio e a imobilidade foram dois dos jeitos menos dolorosos que encontrei, naquele tempo, para ocupar meus dias, meu apartamento, minha cama, meus passeios, meus jantares, meus pensamentos, minhas trepadas e todas essas outras coisas que formam uma vida com ou sem alguém como Ana dentro dela.

Quando Ana me deixou, eu fiquei muito tempo parado na sala do apartamento, cerca de oito horas da noite, com o bilhete dela nas mãos. No horário de verão, pela janela aberta da sala, à luz das oito horas da noite podiam-se ainda ver uns restos dourados e vermelho deixados pelo sol atrás dos edifícios, nos lados de Pinheiros. Eu fiquei muito tempo parado no meio da sala do apartamento, o último bilhete de Ana nas mãos, olhando pela janela os dourados e o vermelho do céu. E lembro que pensei agora o telefone vai tocar, e o telefone não tocou, e depois de algum tempo em que o telefone não tocou, e podia ser Lucinha da agência ou Paulo do cineclube ou Nelson de Paris ou minha mãe do Sul, convidando para jantar, para cheirar pó, para ver Nastassia Kinski nua, pergunrando que tempo fazia ou qualquer coisa assim, então pensei agora a campainha vai tocar. Podia ser o porteiro entregando alguma dessas criancinhas meio monstros de edifício, que adoram apertar as campainhas alheias, depois sair correndo. Ou simples engano, podia ser. Mas a campainha também não tocou, e eu continuei por muito tempo sem salvação parado ali no centro da sala que começava a ficar azulada pela noite, feito o interior de um aquário, o bilhete de Ana nas mãos, sem fazer absolutamente nada além de respirar.

Depois que Ana me deixou - não naquele momento exato em que estou ali parado, porque aquele momento exato é o momento-quando, não o momento-depois, e no momento-quando não acontece nada dentro dele, somente a ausência da Ana, igual a uma bolha de sabão redonda, luminosa, suspensa no ar, bem no centro da sala do apartamento, e dentro dessa bolha é que estou parado também, suspenso também, mas não luminoso, ao contrário, opaco, fosco, sem brilho e ainda vestido com um dos ternos que uso para trabalhar, apenas o nó da gravata levemente afrouxado, porque é começo de verão e o suor que escorre pelo meu corpo começa a molhar as mãos e a dissolver a tinta das letras no bilhete de Ana - depois que Ana me deixou, como ia dizendo, dei para beber, como é de praxe.

De todos aqueles dias seguintes, só guardei três gostos na boca - de vodca, de lágrima e de café. O de vodca, sem água nem limão ou suco de laranja, vodca pura, transparente, meio viscosa, durante as noites em que chegava em casa e, sem Ana, sentava no sofá para beber no último copo de cristal que sobrara de uma briga. O gosto de lágrimas chegava nas madrugadas, quando conseguia me arrastar da sala para o quarto e me jogava na cama grande, sem Ana, cujos lençóis não troquei durante muito tempo porque ainda guardavam o cheiro dela, e então me batia e gemia arranhando as paredes com as unhas, abraçava os travesseiros como se fossem o corpo dela, e chorava e chorava e chorava até dormir sonos de pedra sem sonhos. O gosto de café sem açúcar acompanhava manhãs de ressaca e tardes na agência, entre textos de publicidade e sustos a cada vez que o telefone tocava. Porque no meio dos restos dos gostos de vodca, lágrima e café, entre as pontadas na cabeça, o nojo da boca do estômago e os olhos inchados, principalmente às sextas-feiras, pouco antes de desabarem sobre mim aqueles sábados e domingos nunca mais com Ana, vinha a certeza de que, de repente, bem normal, alguém diria telefone-para-você e do outro lado da linha aquela voz conhecida diria sinto-falta-quero-voltar. Isso nunca aconteceu.

O que começou a acontecer, no meio daquele ciclo do gosto de vodca, lágrima e café, foi mesmo o gosto de vômito na minha boca. Porque no meio daquele momento entre a vodca e a lágrima, em que me arrastava da sala para o quarto, acontecia às vezes de o pequeno corredor do apartamento parecer enorme como o de um transatlântico em plena tempestade. Entre a sala e o quarto, em plena tempestade, oscilando no interior do transatlântico, eu não conseguia evitar de parar à porta do banheiro, no pequeno corredor que parecia enorme. Eu me ajoelhava com cuidado no chão, me abraçava na privada de louça amarela com muito cuidado, com tanto cuidado como se abraçasse o corpo ainda presente de Ana, guardava prudente no bolso os óculos redondos de armação vermelhinha, enfiava devagar a ponta do dedo indicador cada vez mais fundo na garganta, até que quase toda a vodca, junto com uns restos de sanduíches que comera durante o dia, porque não conseguia engolir quase mais nada, naqueles dias, e o gosto dos muitos cigarros se derramassem misturados pela boca dentro do vaso de louça amarela que não era o corpo de Ana. Vomitava e vomitava de madrugada, abandonado no meio do deserto como um santo que Deus largou em plena penitência - e só sabia perguntar por que, por que, por que, meu Deus, me abandonaste? Nunca ouvi a resposta.

Um pouco depois desses dias que não consigo recordar direito - nem como foram, nem quantos foram, porque deles só ficou aquele gosto de vômito, misturados, no final daquela fase, ao gosto das pizzas, que costumava perdir por telefone, principalmente nos fins-de-semana, e que amanheciam abandonadas na mesa da sala aos sábados, domingos e segundas, entre cinzeiros cheios e guardanapos onde eu não conseguia decifrar as frases que escrevera na noite anterior, e provavelmente diziam banalidades, como volta-para-mim-Ana ou eu-não-consigo-viver-sem-você, palavras meio derretidas pelas manchas do vinho, pela gordura das pizzas -, depois daqueles dias começou o tempo em que eu queria matar Ana dentro de tudo aquilo que era eu, e que incluía aquela cama, aquele quarto, aquela sala, aquela mesa, aquele apartamento, aquela vida que tinha se tornado a minha depois que Ana me deixou.

Mandei para a lavanderia os lençóis verde-clarinhos que ainda guardavam o cheiro de Ana - e seria cruel demais para mim lembrar agora que cheiro era esse, aquele, bem na curva onde o pescoço se transforma em ombro, um lugar onde o cheiro de nenhuma pessoa é igual ao cheiro de outra pessoa -, mudei os móveis de lugar, comprei um Kutka e um Gregório, um forno microondas, fitas de vídeo, duas dúzias de copos de cristal, e comecei a trazer outras mulheres para casa. Mulheres que não eram Ana, mulheres que jamais poderiam ser Ana, mulheres que não tinham nem teriam nada a ver com Ana. Se Ana tinha os seios pequenos e duros, eu as escolhia pelos seios grandes e moles, se Ana tinha os cabelos quase louros, eu as trazia de cabelos pretos, se Ana tivesse a voz rouca eu a selecionava pelas vozes estridentes que gemiam coisas vulgares quando estávamos trepando, bem diversas das que Ana dizia ou não dizia, ela nunca dizia nada além de amor-amor ou meu-menino-querido, passando dos dedos da mão direita na minha nuca e os dedos da mão esquerda pelas minhas costas. Vieram Gina, a das calcinhas pretas, e Lilian, a dos olhos verdes frios, e Beth, das coxas grossas e pés gelados, e Marilene, que fumava demais e tinha um filho, e Mariko, a nissei que queria ser loura, e também Marta, Luiza, Creuza, Júlia, Débora, Vivian, Paula, Teresa, Luciana, Solange, Maristela, Adriana, Vera, Silvia, Neusa, Denise, Karina, Cristina, Marcia, Nadir, Aline e mais de 15 Marias, e uma por uma das garotas ousadas da Rua Augusta, com suas botinhas brancas e minissaia de couro, e destas moças que anunciam especialidades nos jornais. Eu acho que já vim aqui uma vez, alguma dizia, e eu falava não lembro, pode ser, esperando que tirasse a roupa enquanto eu bebia um pouco mais para depois tentar entrar nela, mas meu pau quase nunca obedecia, então eu afundava a cabeça nos seus peitos e choramingava babando sabe, depois que Ana me deixou eu nunca mais, e mesmo quando meu pau finalmente endurecia, depois que eu conseguia gozar seco ardido dentro dela, me enxugar com alguma toalha e expulsá-la com um cheque cinco estrelas, sem cruzar ¿ então eu me jogava de bruços na cama e pedia perdão à Ana por traí-la assim, com aquelas vagabundas. Trair Ana, que me abandonara, doía mais que ela ter me abandonado, sem se importar que eu naufragasse toda noite no enorme corredor de transatlântico daquele apartamento em plena tempestade, sem salva-vidas.

Depois que Ana me deixou, muitos meses depois, veio o ciclo das anunciações, do I Ching, dos búzios, cartas de Tarot, pêndulos, vidências, números e axés ¿ ela volta, garantiam, mas ela não voltava - e veio então o ciclo das terapias de grupo, dos psicodramas, dos sonhos junguianos, workshops transacionais, e veio ainda o ciclo da humildade, com promessas à Santo Antônio, velas de sete dias, novenas de Santa Rita, donativos para as pobres criancinhas e velhinhos desamparados, e veio depois o ciclo do novo corte de cabelos, da outra armação para os óculos, guarda-roupa mais jovem, Zoomp, Mister Wonderful, musculação, alongamento, yoga, natação, tai-chi, halteres, cooper, e fui ficando tão bonito e renovado e superado e liberado e esquecido dos tempos em que Ana ainda não tinha me deixado que permiti, então, que viesse também o ciclo dos fins de semana em Búzios, Guarajá ou Monte Verde e de repente quem sabe Carla, mulher de Vicente, tão compreensiva e madura, inesperadamente, Mariana, irmã de Vicente, transponível e natural em seu fio dental metálico, por que não, afinal, o próprio Vicente, tão solícito na maneira como colocava pedras de gelo no meu escocês ou batia outra generosa carreira sobre a pedra de ágata, encostando levemente sua musculosa coxa queimada de sol e o windsurf na minha musculosa coxa também queimada de sol e windsurf. Passou-se tanto tempo depois que Ana me deixou, e eu sobrevivi, que o mundo foi se tornando ao poucos um enorme leque escancarado de mil possibilidades além de Ana. Ah esse mundo de agora, assim tão cheio de mulheres e homens lindos e sedutores interessantes e interessados em mim, que aprendi o jeito de também ser lindo, depois de todos os exercícios para esquecer Ana, e também posso ser sedutor com aquele charme todo especial de homem-quase-maduro-que-já-foi-marcado-por-um-grande-amor-perdido, embora tenha a delicadeza de jamais tocar no assunto. Porque nunca contei à ninguém de Ana. Nunca ninguém soube de Ana em minha vida. Nunca dividi Ana com ninguém. Nunca ninguém jamais soube de tudo isso ou aquilo que aconteceu quando e depois que Ana me deixou.

Por todas essas coisas, talvez, é que nestas noites de hoje, tanto tempo depois, quando chego do trabalho por volta das oito horas da noite e, no horário de verão, pela janela da sala do apartamento ainda é possível ver restos de dourados e vermelhos por trás dos edifícios de Pinheiros, enquanto recolho os inúmeros recados, convites e propostas da secretária eletrônica, sempre tenho a estranha sensação, embora tudo tenha mudado e eu esteja muito bem agora, de que este dia ainda continua o mesmo, como um relógio enguiçado preso no mesmo momento - aquele. Como se quando Ana me deixou não houvesse depois, e eu permanecesse até hoje aqui parado no meio da sala do apartamento que era o nosso, com o último bilhete dela nas mãos. A gravata levemente afrouxada no pescoço, fazia e faz tanto calor que sinto o suor escorrer pelo corpo todo, descer pelo peito, pelos braços, até chegar aos pulsos e escorregar pela palma das mãos que seguram o último bilhete de Ana, dissolvendo a tinta das letras com que ela compôs palavras que se apagam aos poucos, lavadas pelo suor, mas que não consigo esquecer, por mais que o tempo passe e eu, de qualquer jeito e sem Ana, vá em frente. Palavras que dizem coisas duras, secas, simples, arrevogáveis. Que Ana me deixou, que não vai voltar nunca, que é inútil tentar encontrá-la, e finalmente, por mais que eu me debata, que isso é para sempre. Para sempre então, agora, me sinto uma bolha opaca de sabão, suspensa ali no centro da sala do apartamento, à espera de que entre um vento súbito pela janela aberta para levá-la dali, essa bolha estúpida, ou que alguém espete nela um alfinete, para que de repente estoure nesse ar azulado que mais parece o interior de um aquário, e desapareça sem deixar marcas.

segunda-feira, 15 de agosto de 2016

instinto felino observo em círculos sinto cerro os olhos pressinto caminho na direção sem pressa com pés macios só quando certeira pulo ataco agarro arranho mato e mastigo
não me vê
sou vulto
terrível
mania
de ser
sem rumo
ao invés
do polido
o bruto
confusão
do barulho
eu mudo
se força
e não estoura
eu fujo
se arranha
o meu disco
eu furo
claro
que não
escuro
nunca me dê razão
que eu sumo

quinta-feira, 21 de julho de 2016

o que te faz
um poeta
não é ser
pro amor
é ser
do amor
não importa
a dama
a fama
a trama
a cama
o poeta sempre
irremediavelmente
escreve e
ama
ama
&
ama
como um filho ao revés
você nasceu
quando entrou em mim

quinta-feira, 14 de julho de 2016

Emancipada da escravidão mental

Achei que era coisa da minha cabeça
Idéias diferentes
Culpa da rotina
Mas na verdade era
Fernanda
Larissa
Ana
Todas as Fabianas
Além de tantas do seu trabalho que eu não sei o nome
E todas as mulheres que me ameaçavam
Sem rostos
Você sempre esteve disposto
A me deixar em dúvida
Tudo o que eu via era medo
Lembro da primeira vez que você disse que não me amava mais
Foi um dia depois de dizer que me amava muito
Não era confusão
Era abuso
Era uma forma de dizer que eu não tinha sido, que eu não era e que eu não podia ser
Quem poderia saber?
Os mesmos braços que me envolviam
Inesperadamente me empurravam porta a fora
As mesmas mãos que me acariciavam
Com fervor me machucavam em doses alternadas de dor
Não havia, de fato, mãos e braços
Mas havia olhares e palavras
Que me transformavam em alguém doente
Minha mente incessantemente pensava na dor exata em que a primeira facada de sentimentos me cortou
E eu sempre perdia o controle
Me dilacerava em dois picos
No primeiro eu era o bicho feroz que te feria
No segundo, era o assustado, o indefeso
Com as garras presas a você
Tremendo
Temendo
E depois disso,
Nos dias que seguiam
Você sabia como trazer de volta um clima frio
O desprezo
Eu era como um grão
Que não sabia que podia ser semente
Quantos dias eu senti medo...
Como eu senti medo...
De finalmente descobrir que eu não era mesmo nada
Havia sempre uma mulher melhor, um beijo, um carinho, um sexo, uma companhia, uma vida, um mundo
Tão melhor que eu
Todo dia pra mim havia...
Até quando você ia na padaria da esquina de casa
Eu desconfiava
Me esforçava pra manter um sorriso
Sem me lembrar de todas as suas mentiras
Que por tanto tempo foram travestidas como a minha loucura
Além de tudo eu sentia culpa
Tinha vergonha
De mim
Do meu corpo
De nós
Não contava pra ninguém o que acontecia
Vivia o que não existia
Pra não me sentir tão só
Enquanto isso você me dizia que eu pensava que sabia tudo
Só pra que eu achasse que não podia ser inteligente
Dizia que as pessoas me paparicavam demais
Só pra que eu achasse que não podia ser amada
Dizia que tinha dificuldades de me elogiar
(Assim como fazia na rua com outras meninas)
Só pra que eu achasse que não podia ser bonita
Dizia toda noite que não me queria
Só pra que eu achasse que não podia ser desejada
Mas quando a gente saia me beijava beijos de novela
Porque sabia que outros olhares podiam e iam me encontrar
E naqueles dias na volta pra casa
Meu coração se enchia de esperança
Mas você fazia sempre questão de me pôr no meu lugar
Nos dias bons trazia café da manhã na cama
Pra que eu não fizesse drama
Se descobrisse suas tramas do dia anterior
Você sempre fez o que eu quis
Mas nunca o que eu precisava
Assim era mais fácil me desfazer
E se fazer
Enquanto todo mundo acreditava
E eu morri aos poucos
Eu que demorei tanto pra saber que também tinha direito a vida e ao amor
Pelo amor de deus
Eu sou uma mulher preta
Pelo amor de deus
Eu sei o que é ser rejeitada desde cedo
Você foi a primeira pessoa que quis me namorar
O primeiro que me viu como sujeito
No começo minha dureza era só falta de prática
Era fuga da chance de mais uma vez ser usada
Mas com você parecia amor ingênuo
No início parecia algo bom
Por isso eu cultivei pra que se tornasse afeto
Infelizmente no fim só colhi tristeza
Eu demorei pra assimilar, pra perceber
Uma tristeza tão profunda
Que me emudeceu
Marejou meus olhos
Tornou meu corpo rígido
E deixou cicatrizes invisíveis
E agora eu sei porque quando saí por aquela porta
Eu me senti como um passarinho
Eu pensei que não podia
Eu pensei que não acabaria
Mas acabou
E eu nunca mais vou permitir
Apesar do medo
Apesar da solidão
Apesar do que o sistema impõe a minha e a tantas peles pretas
Apesar das lembranças que ainda me fazem dormir chorando
Apesar de ser mulher e saber o peso que carrego por isso
Não vou mais permitir que minha cabeça seja invadida ao ponto de eu não poder enxergar o que realmente existe no meu reflexo
Eu sou bela, eu sou forte
E não permito que ninguém tente me convencer do contrário
Eu não permito o que não me permite
Eu renasci.

segunda-feira, 4 de julho de 2016

se contente
com as mentes de 16 anos
that wanna be me
eu já parti
pros states
pro não sei
dessa vida
sem ti
tudo é convidativo
por isso não me decido
falar sobre amor
não consigo
sobre dor
eu só sinto
entre isso e aquilo
eu escolho o destino

sábado, 18 de junho de 2016

meu coração de gelo
esquenta fácil 
e derrete
e escorre
e transborda 
e se divide
em mananciais
de sentimentos
que alimentam
um rio
que corre
e percorre
sem medo
tudo que pode
as vezes some
e se esconde
e condensa
mas depois chove
uma chuva densa
dessas que encharca
quem não tem medo
de se molhar
complicado jogo
me causa
vontade
do outro
sem paciência 
pro engodo
se tomam o doce
eu como o caroço
sou desse tipo
enganoso
pareço muito
ofereço pouco
sem esforço
sigo
ao contrário
na contramão
a contra-gosto
se quiser me por
na sua confusão
entenda metade da minha
e eu te explico o todo
não desvia do meu acidente
pancada bruta
corpo dormente
me olha
no olho
Sejamos sinceros
Às vezes
Só é preciso um bom sexo
Pra nos lembrar
Que a vida é gozo
E não choro
é preciso a prova
pra provar
que amor não se prova
se come por inteiro
o que fica
é sobra
é o que restou
do que já foi verdadeiro
se experimenta
sabe
que não é amargo
mas não chega a ser brigadeiro
não é fome
é olho-gordo
o último pedaço
jamais será
como o primeiro
quando
toco
bem no fundo
do seu cérebro
balanço 
e desordeno
seu cerebelo
perpasso
e entrelaço
sua cognição
é aí
que inexplicavelmente
deixo de ser

tesão
arrepio
boca
gemido
ereção
e me transformo em
ideia

quinta-feira, 9 de junho de 2016

Meus olhos

Eu tenho uma relação de amor e ódio com os meus olhos. Lembro-me de uma vez, quando criança, uma mulher ter se apaixonado por eles na mercearia do bairro. Os dela brilhavam enquanto me dizia encantada que os meus pareciam duas jabuticabas maduras. Eram, de fato, grandes e brilhantes, mas com o passar do tempo, meu nariz, boca e bochechas cresceram tanto que os afundaram para dentro do rosto. Hoje, estão lá, sendo mais como sementes do que como frutos.
Odeio-os porque não tem expressão. Amo olhos expressivos, que sorriem, que desafiam, que seduzem. Meus olhos não se expressam, quando vejo seu reflexo posso enxergar algo como um rio imenso e escuro em que as águas não se mexem e não se pode enxergar o fim. São calmos e sem graça demais e eu prefiro os voluptuosos.
Pelo menos tem mistério, eu acho. Só que rapidamente o mistério se dilui em nada, já que nada representam. Nos retratos são meros coadjuvantes, parecem sempre desajustados, pintados ou sem pintar, tenho a impressão de serem desalinhados, seus cílios são curtos demais, têm bolsas embaixo e uma das pálpebras está cheia de pintas. Meus olhos são feios, coitados. Talvez eu os ame apenas pela estranheza.
Às vezes ficam apertadinhos quando brisados, sonolentos, semi-acordados, ou quando empurrados por um sorriso exageradamente feliz. Continuam inexpressivos, mas os prefiro assim. Meus olhos iludem até a mim mesma, pois nunca posso decifrá-los, estejam eles cerrados ou não.
Raramente se enchem de água, se fecham com dificuldade quando a noite cai e se perdem com facilidade assustadora. Sempre os pego olhando para o nada sem meu comando durante longos períodos, fixados em qualquer horizonte ou desesperadamente errantes. Abertos, mas sem enxergar absolutamente nada. Porém, não posso culpá-los por isso, não faço meditação, durante esses surtos são apenas vítimas da minha leseira crônica.
Além de me causarem estranheza, é certo que meus olhos me incomodam. Sempre quis que fossem outros, talvez mais claros ou mais escuros, tento em vão puxá-los ou levantá-los com pinturas, tento encará-los com carinho, tento fazê-los reagir, mas eles continuam lá, sem nada a me dizer, em silêncio. É também por isso que os amo. É também por isso que os odeio. Nada pode me causar mais paixão e repulsa ao mesmo tempo do que o aquilo que é estranho e desconfortável. Sigo nesse romance mal-resolvido com os meus olhos.

sexta-feira, 27 de maio de 2016

O abuso psicológico dói como um abuso físico. Quem já sofreu, sabe. É ferida que fica aberta.
Reconhecer que foi abusada psicologicamente por alguém  é um processo de libertação e lágrimas. Admitir que alguém que você ama pode fazer mal pra você é um primeiro passo. Gritar é um segundo. Deixar é o terceiro.
Quando sua mente é abusada você se autoboicota o tempo todo, se culpa, é comum que quem abusa te faça acreditar que atitudes tomadas contra você não existem, ou são inocentes impulsos, e que você cria situações em sua própria cabeça,  que a tristeza e dor que você sente são apenas loucuras, alucinações. E é nessa hora que você se sente pequena, a menor do mundo, insegura e frágil.
A sociedade machista nos abusa psicologicamente todos os dias. Eles podem nos fazer acreditar que nosso corpo é desprezível ou que é tão convidativo que é impossível se controlar perto de nós, que nós não somos interessantes ou somos muito, isso baseado no interesse masculino, que não somos dignas de elogios ou que devemos caladas ser "elogiadas" por qualquer um, que somos dispensáveis ou que servimos para servi-los.
Somos objetos de consumo. Descartáveis, trocáveis, usáveis.  Nossos sentimentos, ideias, vontades desaperecem porque somos produto.

E produtos funcionam, não reclamam.

Minhas feridas estão abertas, mas eu cansei. Não quero mais ser produto. Falharei, eu sei, porque tudo é construído pra que eu falhe. Mas eu falarei. Gritarei. Jogarei na cara toda vez. Porque não é remorso, é dor.

segunda-feira, 16 de maio de 2016

Compreendi
A briga
A mão
A faca
O ferimento
A lágrima
A cura
E a cicatriz
O que ficou no pensamento
Foi o instante
Entre o corte
E o sangue
Isso
A poesia não diz
estranhos
sobre o mesmo
teto
meus olhos
tristes
teu desafeto
quanto tempo...
quanto
ego!
sem tato
faltava
tino
a taça
com vinho tinto
estilhaçou
sobrava tinta
e silêncio
tonta
não entendia
nada
entediada
só pintava
feito louca
o branco
e preto
de tudo
desfeito
desesperada
te procurava
até
entre
as minhas
entranhas
estive
tão
cansada
tamanha
falta
do que era tanto
e a rotina
matou
tua alma
egoísta

enterrou
sem rezar
e
então?
terminou
mas a memória
guarda
todas
as apostas
dos cílios
os jeitos
dos sonhos
nossos temas
nos discos
perdoa
mas não foi
a toa
que eu saí dos
trilhos
meu trem
tem pressa
não se despeça
serei eterna
até quando
não estou

carapuça

cabeça confusa
meus versos são iguais
mas cabem
todos
em alguéns diferentes
cada um que me toca
ganha um sentimento
mas minha poesia
é vento
é de quem acha
que se encaixa
palavras
são incapazes
de expressar a dimensão
de amor e dor
antes de vestir-se
da poesia alheia
lembre-se
sempre:
o poeta é um fingidor
só se ajoelha diante de mim
quem tem fé
cética
acredito no que é ou não é
crucifica-me se for capaz
se quiser me prender
solte Barrabás
meu vinho só serve aqueles
que sabem que nunca fui
nem serei água
não posso ser paraíso
já que queimo por dentro
feito inferno em brasas
não sou profana
só natural
mundana
faço parecer que sou sua
morro de braços abertos por ti
porque adoro drama
mas ressucito
no terceiro dia
irreal como poesia
escuto a voz que me chama
recuso o seu deus
adeus
meu único templo
tem como nome
Anna

sexta-feira, 6 de maio de 2016

Seus olhos de luneta
Pequenininhos
Enxergam todas
As minhas estrelas
Seu sorriso largo
Invade e descobre
Todos os cantos
Dos meus planetas
Seus sonhos loucos
Aos poucos
Atingem as minhas galáxias
Seu coração quente
Explode e transforma
Toda em Mercurio
A minha Via Láctea
labios
de mel
lambo
teu céu
louca
pela
sua
pele
mais que
quente
flambada
latente
melada
inteira
libido e
sina
longa viagem
da minha
língua
na sua
melanina
em
transe
embaixo
bem
alto
encaixa
em
cima
de moi
em
partes
embate
entre
corpos
sem
ar

quinta-feira, 28 de abril de 2016

a diferença
entre
voar e dar rasante
a gente sabe
no instante
em que aprende
o que é horizonte
e o que é fresta
nem todo mundo pode
ou compreende
nunca será fruto maduro
pois nasceu semente
já não tento me ajustar
ao que me aperta
na caminhada paciente
dei água ao pássaro
e à serpente
jogo sujo
não mais me pega
quem corre
escorre
quem encara
morde
se mastiga
engole
quem vacila
atesta
sem conversa mole
um alecrim
três porres
meu esforço vão
só se for pra festa
num
total
de
zero
chances
nunca
tive
nem
metade
do
pouquinho
nem
um terço
de
um
por cento
nenhum
grão
fico
nessa
vontade
cheia
de
vazio
vácuo
ar
comprimido
mínimo
múltiplo
de nada
subtração
sigo
inteira
tomada
lotada
todinha
abarrotada
até a boca
multiplicada
cem
por cento
preenchida
de tesão

terça-feira, 26 de abril de 2016

dia
cinza
em cima
de mim
vejo seu rosto
indo
e vindo
seus dedos
deslizando
como a chuva
descendo
caindo
sentindo
sua língua
me inclino
arrepio
gemido...
pela janela
cortando
o corpo quente
entra
o vento frio
sinto
meus olhos
abrindo
lamento
era só
um sonho
mas continua
desejo
vivo
instinto
queimando
na carne
na mente
sua imagem
me deixou
no cio
saia
de poá
por onde entra
o ar
aumenta o fogo
vestido solto
quente
nunca morno
sem sutiã
brisa
da manhã
acordar cedo
só se for
pra ter chamego
sou da lua
nua
sua
rua
e boêmia
minha
fluida
louca
meus versos
saem
na madrugada
das minhas
mãos
estouram
prazeres
e cores
refrescantes
como cerveja gelada
vento na cara
sem
meias
palavras
leve
livre
sua boca
prende
meu coração
escapa

terça-feira, 19 de abril de 2016

solução de ilusão

chegou
me cegou
secou
o sangue
que escorria
sem
estancar
sem mais
nem menos
não sofria
mais
mas sem deixar
de desconfiar
foi
subordinada explicativa
um sopro
uma necessidade
de satisfação
entre as vírgulas
da vida
um sossego
um tesão
uma saída
depois
sumiu
saiu
sei lá
eu sentia
sozinha
mas sem dor

saudade
se for
nem sei explicar

sábado, 16 de abril de 2016

sou como dizem
coração mole
idiota
realista dilacerada
esqueço fácil
quem me caça
me some
a cara do predador
consumida
às vezes pela cachaça
na maioria das vezes
pelo amor
amo
até quem me fura
pelas costas
um sorriso
já me põe disposta
a compreender
a pequenez do outro
a enxergá-la em mim
me xingue
beije meu ex-marido
me odeie sem motivo
eu te amarei
essa é minha vingança
meu coração fridesco
árvore da esperança
sempre vê
alguma poesia
na dor do mundo
opressores
invejosos
arrogantes
preconceituosos
amo sem distinção
digo não
me incomodo
não suporto
me revolto
o que nunca consigo
é ter ódio
nada pode ser maior
que o meu perdão

quinta-feira, 14 de abril de 2016

eu não nasci pra ser de alguém
isso porque
os jornais dizem que valho
mais de mil vinténs
é certo
sempre desperto
mais que um pênis ereto
provoco
o cérebro
o desespero
tiro fora do eixo
não peço arrego
encaro de frente
não calo
pra frente
apesar disso
sou pateticamente
normal
nunca fui diferente
não sou biscate
tenho modos
me encaixo no sonho da família
só não suporto
nem nunca suportei
a ideia de ser uma
isso sempre me faz sofrer
nunca diga nunca
mas eu exijo prazer
cerveja gelada
poesia
bocas de meninas
você

Mariposa



ninguém reparava
em suas asas
antes que começasse a voar
incomoda
porque é mariposa
e não borboleta
diferente
asas negras
pela noite
batem
exploram
ares
casas
corpos
gosta de se sentir abrigada
entre paredes
mas some
assim que o dia amanhece
é predestinada
a olhares desconfiados
uma presença
que hora acalma
hora enlouquece

segunda-feira, 4 de abril de 2016

é como a chuva
num domingo de manhã
quando chega
me desperta
só pra eu ter o prazer
de relaxar de novo
folga
brisa
cheiro
seu abraço
não é aguaceiro
é chuva fina
que molha
escorre
e limpa
chova todo dia
em mim

terça-feira, 29 de março de 2016

só ser

O sentimento da solidão
Seja
Escolhido ou não
Transforma
Põe forma
Às coisas que antes não reparávamos
Reparos emocionais
Consertos
Valores e culpas
Acertos e erros
Sentir-se só
No mundo
Desprender-se do outro
E de tudo
Traz sensibilidade
Visão ampla
Mais verdade ao coração
Nós
A sós
Podemos enxergar
Nos espelhos das casas
E dos olhos
Nossas próprias frustrações
Medos
Belezas
E sonhos
Sozinhos
Nos fechamos em nossos casulos
Quem vive e sente
Aprende a aproveitar
Percebe que é só o tempo
Nos preparando para voar

Muda

A militância exige que eu grite
Mas essa cidade só me causa
Silêncio
Pra que eu não permaneça calada
Me manifesto, então, em forma de versos
Só o que peço é que me escutem
Porque eu também sou poeta
Porque assim eu quis
Me desfiz
Do que ainda hoje
Querem que eu seja
Não sou mulata
Não sou mucama
Minha dona
Sou eu
Não esquento cama de doutor
Não obedeço ordem de quem for
A nenhuma Princesa Isabel
Devo favor
Ao contrário do que dizem
Eu sempre soube o meu valor
O que eu nunca soube
Mas tive que engolir
Foi o ir e vir de sorrisos amarelos
De um mundo não sincero e hostil
Porém me nego a abaixar a cabeça
E acreditar que eu só existi
No momento em que o outro me viu
Já tive que ouvir tanta besteira
Dessa Rio Preto cafona e interesseira
Que me prefere muda
Que me prefere nada
Que adora minha mão-de-obra barata
Mas não aceita que eu me torne destaque
Pois chamem de pretensão
O que sai da minha mente e coração
Essa é minha forma de combate
À essa casa-grande alternativa
À essa elite deprimente e bem sucedida
A esse bando de covardes

sábado, 26 de março de 2016

como eu estive frustrada
sorriso no rosto
toda arrumada
não recebia um elogio seu
como eu estive frustrada
quando sem roupa na cama
deitada
você apagava a luz pra dormir
e quem eu abraçava era o breu
como eu estive frustrada
quando notava que uma pequena tela
cheia de nada
era sempre mais interessante do que eu
como eu estive frustrada
quando percebi que cem palavras minhas
eram apenas um silêncio seu
como eu estive frustrada
quando as mentiras eram mais fáceis
do que a sinceridade que você prometeu
como eu estive frustrada
desinteressada
curtida
murcha
isolada
infelizmente
foi isso que me ocorreu

não deu.

vive no país das maravilhas
tipo Alice
capitão do mato
animal domesticado
ainda persiste
obedece quem massacra
se cala em frente aos piores deslizes
só abre a boca pra julgar
aqueles que aproveitaram as chances de se organizar
és o gatilho do teu próprio rifle
deboismo para os cegos
melhor remédio
pra proteção da elite
preto gourmet
discurso de resistência pra inglês ver
arranca aplausos de quem assiste
tua superioridade não passa de covardia
passa um pano pra preconceituoso
e jura que ainda ta por cima
não mete cara
não encara
nega as evidências e gracinhas
é quase da turma dos que pensam que se ninguém falar disso
o racismo some, tipo magia
tua melhor homenagem pra mulher preta
foi postar foto de uma sem calcinha
namastê?
mais amor por favor?
prefiro menos hipocrisia!
síndrome de Cirilo
só as branquinha paz e amor
pra pagar pau pra sua filosofia
desculpa ser tão direta, pretinho
mas ainda da tempo de assinar
a sua carta de alforria

sexta-feira, 18 de março de 2016

Loba

"Contudo, são esses vislumbres fugazes, originados tanto da beleza quanto da perda, que nos deixam tão desoladas, tão agitadas, tão ansiosas que acabamos por seguir nossa natureza selvagem. É então que saltamos floresta adentro, em meio ao deserto ou à neve, e corremos muito, com nossos olhos varrendo o solo, nossos ouvidos em fina sintonia, procurando em cima e embaixo, em busca de uma pista, um resquício, um sinal de que ela está viva, de que não perdemos nossa oportunidade. E, quando farejamos seu rastro, é natural que corramos muito para alcançá-la, que nos livremos da mesa de trabalho, dos relacionamentos, que esvaziemos nossa mente, viremos uma nova página, insistamos numa ruptura, desobedeçamos as regras, paremos o mundo, porque não vamos mais prosseguir sem ela.
Uma vez que a mulheres a tenham perdido e a tenham recuperado, elas lutarão com garra para mantê-la, pois com ela suas vidas criativas florescem; seus relacionamentos adquirem significado, profundidade e saúde; seus ciclos de sexualidade, criatividade, trabalho e diversão são restabelecidos; elas deixam de ser alvos para as atividades predatórias dos outros; segundo as leis da natureza, ela têm igual direito a crescer e vicejar. Agora, seu cansaço do final do dia tem como origem o trabalho e esforços satisfatórios, não o fato de viverem enclausuradas num relacionamento, num emprego ou num estado de espírito pequenos demais. Elas sabem instintivamente quando as coisas devem morrer e quando devem viver; elas sabem como ir embora e como ficar."

ESTÉS, C. P. Mulheres que correm com os lobos : mitos e histórias do arquétipo da mulher selvagem. p.20

segunda-feira, 14 de março de 2016

Será que agora sou dessas
Que escreve sobre todo aquele que caminha
Entre
as
minhas
pernas?
Será que gastarei linhas com essa?
Sendo que nem sei o porquê
Sendo que você
É uma pergunta
E eu nunca pensei que acharia uma pergunta bonita
Às vezes a gente duvida
E é por isso que eu não tinha te olhado ainda
Nunca tinha reparado
Na moldura deliciosa do seu sorriso rasgado
Que você era mais interessante que o amigo do lado
Talvez a tua sagacidade
Eu já tinha notado
Da tua esperteza eu sabia!
E das dúvidas que me restam
Ainda não sei se você fica mais gostoso
Por baixo ou por cima
Ainda bem que antes de partir
Eu conheci a sua melhor rima
E concluí que nem só de amor
Vive uma poesia

terça-feira, 16 de fevereiro de 2016

Objeto
de meu mais desesperado desejo
não seja aquilo
por quem ardo e não vejo

seja estrela que me beija
oriente que me reja
azul amor beleza

faça qualquer coisa
mas pelo amor de deus
ou de nós dois

SEJA



Paulo Leminski

quinta-feira, 11 de fevereiro de 2016


Liberdade
Que prendeu meus pensamentos
Te achei estranhamente lindo
Admirei os seus defeitos
Essa sua segurança de um moço
De 21 anos
Sem medo no peito
Essa sua insegurança de um moço
De 21 anos
Querendo impressionar o mundo inteiro
Você quase contradiz as regras da sociedade
Não se preocupa com a moral
Mas teme a calvície que veio antes da idade
Se olha nos reflexos
Dos prédios
E se pergunta:
Quem de tudo isso que eu quero agarrar
Me agarraria?
Me espia
De novo
De frente
De costas
De rabo de olho
Me prende
Me solta
Me curva
Me salva outra vez da nega maluca
Você me despertou pra vida
Árbol de la esperanza
Em meio a serpentina
Me fez lembrar que a minha poesia preferida
É aquela do Drummond
 “Mundo mundo vasto mundo
Mais vasto é o meu coração”

terça-feira, 26 de janeiro de 2016

Fui
Como as mulheres de minha família
Paciente
Com toda
Irresponsabilidade
Passividade
Mentira
Perdoei com a desculpa de que você
Nunca soube direito o que fazer
Quando no fundo eu sabia
Que você fazia tanta coisas
Sem que eu soubesse
Lembro disso
Quando me vem
A noitinha ou logo de manhã
Um tipo de buraco na boca do estômago
Um buraco pesado
Que amolece o corpo
Quando choro escondida no banheiro
Lágrimas que caem naturalmente ferozes
Como tempestades
Eu lembro
Que fiz minha parte
E tudo que eu ouvi foi
Silêncio
Seu ego me viu secar
Como aquelas rosas que a gente colocava em garrafas de cerveja usadas
Nós demoravamos pra tirá-las de lá
Porque elas pareciam belas
Mesmo mortas
Mesmo sem transmitir nenhum tipo de alegria
A gente enconde a verdade de nós mesmos
Quando é mais fácil
Ou quando dói

Pulei

Não existe nada pior do que viver em uma inércia cômoda. Nada é mais doloroso. Nem o fim. Nada pode ser mais doído do que levantar questões e não escutar respostas, do que conversar sozinho. Não faz bem nunca ouvir elogios, pior ainda é nunca ouvir putaria. É triste dormir sendo enganado. É decepcionante não ver esforço para que você sinta admiração, ou simplesmente para que você fique. Viver assim é como estar indeciso a beira de um penhasco ao lado de alguém que acha que você nunca vai ter coragem de pular.

terça-feira, 12 de janeiro de 2016

Sororidade preta: o sentimento antes do termo

Aquele olhar.... O olhar de reconhecimento. Que preta nunca o recebeu? Quando saímos do nosso ambiente de convívio e enxergamos lá fora alguém como nós, os olhares se cruzam e uma sensação boa invade o peito, a sensação de irmandade.
Antes de saber o que era sororidade, era isso que eu sentia sempre que via uma mulher negra. Mesmo ainda não me reconhecendo negra de fato, mesmo nem um pouco próxima das questões feministas e raciais, eu sempre vi em outra mulher negra algum tipo de proximidade.
Desde criança isso acontece, quando via outras crianças negras, principalmente meninas, meus olhos se acendiam como estrelas e eu olhava, daquela maneira indiscreta que as crianças costumam olhar, para o outro que era maravilhosamente ou assustadoramente, igual a mim. Sim, porque também assustava saber que existia outro alguém no mundo que se sentia como eu. É claro que como criança eu não tinha esclarecimento sobre esses pensamentos, eu apenas me sentia assim.
E mesmo depois de crescida, isso não se perdeu, é inevitável que no ônibus, na rua, no mercado ou em qualquer lugar meu olhar cruze-se com o de outra preta, como se fosse um código, como se fosse impossível não olhar uma para outra como se já nos conhecêssemos. Um sorriso, um tratamento diferente, uma facilidade de empatia, acabamos sempre nos relacionando de forma mais íntima.
As vezes a sensação de se enxergar no outro traz um misto de sensações, pode ser difícil se não é assim que você quer se reconhecer. Pra mim o processo de me reconhecer negra demorou, por conta do que esse reconhecimento carrega. Precisei esclarecer antes algumas questões, precisei saber o que significava tentarem me convencer que eu não era negra e sim “moreninha”, precisei compreender várias situações da minha vida e porque elas ocorreram, e foi aí que entendi que eu não estava sozinha, que nós eramos muitas e que não havia nada de errado nisso, que aquela sensação diferente que eu sentia quando encontrava uma outra mulher negra, era simplesmente uma busca pelo meu próprio eu. Aquelas mulheres que eu olhava na rua eram negras, as mulheres da minha casa eram negras e isso se tornou maravilhoso, porque enfim eu também podia SER.
Fui há um tempo atrás acompanhar uma amiga em uma escola para uma palestra sobre racismo, estávamos eu, ela e mais uma amiga, todas negras. Era uma escola de periferia e muitas crianças também eram negras. O olhar fraterno vindo das crianças foi instantâneo, e senti que aquilo não aconteceu só porque eramos adultas falando para toda classe, mas também porque havia um reconhecimento. Além da nossa fala, a nossa presença, a nossa imagem, como mulheres negras que se reconhecem como tal, fez muita diferença. As meninas se sentiram a vontade para se aproximar e falar sobre suas famílias, sobre suas experiências, sobre seus cabelos, foi bastante significativo pra mim.
Assim como também me marcou o olhar de uma menininha dias atrás numa pizzaria, ela parou o que estava fazendo quando eu cheguei, nós estávamos coincidentemente vestidas de maneira parecida, com o cabelo exatamente igual. Os olhos dela me seguiram por toda a pizzaria, acompanhando meus movimentos, a mãe, ao lado dela, imediatamente sorriu pra mim e nós soubemos o que tudo aquilo significava, mesmo sem termos trocado uma única palavra.
Logo que comecei a faculdade, sozinha, sem dividir com ninguém, comecei a me indagar sobre o que era ser negra. Todos os dias quando eu ia pegar o ônibus para ir até o estágio eu via uma moça. Ela era negra, muito bonita, vestia roupas lindas e tinha o cabelo mais lindo que eu já tinha visto. Diferente de mim, ela usava o cabelo natural, sempre pintado com cores vibrantes. Carregava algum tipo de pasta, ficava pensando, o que ela será que ela faz? Arquitetura? Moda? Alguma coisa legal, com certeza. O meu olhar para ela era aquele. Mesmo que eu não fosse como ela, eu gostaria de ser, ela me inspirava, tinha autoconfiança, tinha estilo e estava com a sua pasta buscando algum tipo de conhecimento, buscando fazer algo que ela gostava. O meu pensamento era basicamente: “Olha minha irmã ali do outro lado, ela pode ser o que ela quiser, então eu também posso”.
Passei anos observando essa moça pelas ruas, enquanto fui crescendo, fui evoluindo, fui cada vez mais me aproximando da minha identidade, refletindo sobre o que é ser uma mulher negra e reverberando esses pensamentos.
Dia desses vem uma surpresa, essa mesma moça que mudou tantas coisas em mim, mas com quem eu nunca tive a oportunidade de conversar, me deu um inesperado abraço e disse no meu ouvido: “Obrigada pelo o que você tem feito”. Eu não sei exatamente o que eu tenho feito, mas isso teve um significado enorme pra mim. Não pelo que me foi dito, mas por quem foi dito. Saber que posso chegar de alguma maneira a uma irmã me faz mais feliz.
Nós, mulheres negras, precisamos de mais representatividade, porque essa busca por olhares iguais aos nossos nada mais é que uma carência da sensação de pertencimento. Ainda somos apagas, excluídas e segregadas. Condicionadas a espaços subalternos, estereotipadas, diminuídas. Estamos nos piores lugares das estatísticas. A nossa irmandade inconsciente também nos faz mais fortes na caminhada. Um salve a todas as pretas que encontrei e encontrarei pelo caminho!

 

segunda-feira, 4 de janeiro de 2016

Meu feminismo é para quem? O mito da mulher forte

Diversas vezes faço questão de me fazer certas perguntas como: meu feminismo é para quem? Meu feminismo é para que? O que pretendo com a ideia de não culpabilizar mulheres ou de ter sororidade? A quem pretendo proteger ou apoiar? Pelos direitos de quem eu luto? O que, de fato, estou mudando em mim e na minha maneira de enxergar outra mulher quando me autodeclaro feminista?
Sou uma mulher negra, sei e vou percebendo quais são as opressões que me atingem, as leis que não me contemplam, como a sociedade se comporta quando se trata das minhas questões. Procuro também saber o que atinge as mulheres que estão a minha volta, as feministas com quais eu milito, minhas amigas e familiares.
Só que será que eu compreendo o que não faz parte da minha realidade? Entendo aquilo que sai fora dos meus padrões? Será que ainda não faço muito juízo de valor de realidades das quais eu não participo? Será que posso entender mulheres que não tem a mesma consciência que a minha?
A grande obrigação da mulher na sociedade patriarcal é ser submissa. Muitas mulheres, por inúmeros motivos, acabam se desprendendo desse papel e se tornando de alguma maneira independentes. O problema é que quando saímos do papel de submissão, ainda acontece de nos condicionarmos e condicionarmos outras mulheres a outro papel submisso, porém um tanto quanto disfarçado de força, o papel da resiliência.
Mesmo nos dizendo feministas, para muitas de nós as mulheres ideais ainda seguem certos padrões. Alguns exemplos são o da mulher que é “melhor que isso”, ou seja, a mulher que passa por uma situação difícil, ignorando e seguindo em frente, ou o da mulher que sofre sim, mas de cabeça erguida. O que nós fazemos é disfarçar o quanto uma mulher pode ser atingida colocando-a  na posição daquela que suporta tudo mantendo-se digna.
A mulher que sai desse padrão de resistência cega quase sempre é considerada louca, imoral ou fraca, ela nunca é considerada uma mulher forte e admirável. Ainda nos falta, muitas vezes, um olhar compreensivo para a mulher que não sabe lidar com certas situações machistas de um jeito supostamente inabalável, com a mulher que acaba assumindo papéis que não aprovamos e que discordamos, com a mulher que sucumbe a fragilidade e submissão em um mundo que não apoia suas decisões e desejos.
Também assumimos muito o papel da mulher resiliente sem perceber que se trata de um papel que nos coloca em segundo plano, muitas vezes abdicamos de desejos próprios e enfrentamos dificuldades descabidas para nos encaixarmos ao que é esperado de nós e a imagem a qual queremos transmitir. Realmente, cada vez mais, nos tornamos e nos orgulhamos de sermos mulheres independentes e com voz ativa, tomamos as decisões familiares, temos controle sobre nossos planos profissionais, não nos deixamos abater pelos padrões estéticos. Só que ao mesmo que conquistamos esse poder sobre nós mesmas, algumas de nós ainda carregam o medo de que a imagem de esposa perfeita, de fortaleza que organiza a casa, de base para educação das crianças, de guerreira que enfrenta tudo e todos seja manchada entre família e amigos. Ainda enxergamos a imagem da mulher forte como aquela que não fraqueja nunca, com isso acabamos não permitindo que nenhuma de nós fraqueje.
Os relacionamentos abusivos são uma realidade para inúmeras mulheres, todo mundo conhece uma mulher que vive dentro de um relacionamento que não a agrada ou que não a faz bem, mas que ela não consegue terminar por diversos motivos. Dentro do feminismo discute-se com frequência sobre todos os tipos abusos que a mulher pode sofrer, abusos sexuais, físicos e psicológicos vindo de estranhos ou dos próprios companheiros, também fala-se bastante sobre como a mulher é sempre culpada independente da situação.
Só que as vezes sinto que essas discussões ficam apenas na teoria, nos grupos de Internet e nas frases feitas das redes sociais. Falamos sobre tudo isso e ao mesmo tempo ainda somos, as vezes inconscientemente, capazes de proteger homens em segundos e de rebaixar mulheres na mesma velocidade.
Mesmo nos dizendo feministas, perdoamos com facilidade e não questionamos o papai que foi abusador com a mamãe durante toda vida usando a desculpa de que ele foi um bom pai, e massacramos terrivelmente uma mulher, principalmente se mãe, se ela for infiel ou deixar os filhos. Tratamos como uma zero a esquerda uma mulher porque ela permite que um homem dite o que ela deve fazer e como uma pessoa sem caráter ou intelectualidade uma mulher que se hiperssexualiza. Ainda enchemos os olhos de lágrimas com a história do pai que criou cinco filhos sozinho depois de ser abandonado pela companheira, enquanto esculachamos uma mãe que arranjou um novo e estranho companheiro, mesmo que ela tenha passado toda a vida dando duro pelos filhos. Nós julgamos mulheres com facilidade, nos falta empatia, nos falta sororidade, nos falta compreensão com aquelas que não seguem nossos padrões de conduta, enquanto com os homens, as situações são compreendidas, superadas ou ignoradas. E diante de todo esse julgamento, ainda exigimos que as mulheres sejam fortes.
Desconfiamos e condenamos a mulher que deixa seu psicológico ser abalado, que toma atitudes erradas levada por um desespero desenganado, que assume o papel imoral sem ao menos resistir, que não é digna, que não é forte, que não é guerreira, que não aguenta as pancadas de pé. Queremos que toda mulher que sofre seja resiliente, suporte, não saia da linha. Mantemos, sem perceber, a ideia machista de “mulher de verdade” porque consideramos que o contrário foge dos padrões aceitos e/ou dos nossos valores morais. Nós reproduzimos machismo, nós coroamos um papel tão difícil que é o papel da resiliência.
Quando me pergunto para quem e para que serve meu feminismo, quero ter certeza de que ele também é sobre mulheres fragilizadas, que vivem em situações vulneráveis, com realidades diferentes da minha, quero ter certeza que ele vai servir  para que eu seja alguém que tenta ao menos compreender aquela que é julgada e condenada por todo o resto. Eu não entendo muitas atitudes de certas mulheres porque, na maioria da vezes, não são e nem seriam espelhos das minhas, mas a última coisa que eu farei, sendo eu feminista, é julgá-las como loucas, fracas, putas, safadas, sem-vergonhas ou imorais. A última coisa que eu farei é exigir força de alguém que eu não entendo, em uma situação que eu não vivo, ainda mais sendo esta pessoa uma mulher. Se não eu, feminista, quem a olhará com outros olhos? Não adianta eu dizer que minha luta é também pelas mulheres negras e periféricas para parecer altruísta, se muitas dessas mulheres estão em situação de vulnerabilidade e se portando de maneira que eu não aprovaria no meu cotidiano e eu sequer penso nisso. Não adianta eu botar cartaz no Facebook dizendo que “Somos todas putas”, se julgo como puta aquela que não faz o que eu acho que deveria ser feito, se, no fundo, ainda me utilizo desse conceito machista que ironicamente incorporo. Não adianta eu dizer que sei e levantar bandeira, se eu mesma não aplico o que digo.
Ainda cometo muitos erros, essa reflexão me atinge diretamente, todas nós estamos em processo de desconstrução e tentando levar essas ideias a frente, porém me questiono o tempo todo e vou seguir me questionando para que meu feminismo vá além do meu umbigo, para que eu lute, antes de qualquer coisa, pela libertação da mulher, a verdadeira libertação de toda e qualquer mulher.