segunda-feira, 4 de janeiro de 2016

Meu feminismo é para quem? O mito da mulher forte

Diversas vezes faço questão de me fazer certas perguntas como: meu feminismo é para quem? Meu feminismo é para que? O que pretendo com a ideia de não culpabilizar mulheres ou de ter sororidade? A quem pretendo proteger ou apoiar? Pelos direitos de quem eu luto? O que, de fato, estou mudando em mim e na minha maneira de enxergar outra mulher quando me autodeclaro feminista?
Sou uma mulher negra, sei e vou percebendo quais são as opressões que me atingem, as leis que não me contemplam, como a sociedade se comporta quando se trata das minhas questões. Procuro também saber o que atinge as mulheres que estão a minha volta, as feministas com quais eu milito, minhas amigas e familiares.
Só que será que eu compreendo o que não faz parte da minha realidade? Entendo aquilo que sai fora dos meus padrões? Será que ainda não faço muito juízo de valor de realidades das quais eu não participo? Será que posso entender mulheres que não tem a mesma consciência que a minha?
A grande obrigação da mulher na sociedade patriarcal é ser submissa. Muitas mulheres, por inúmeros motivos, acabam se desprendendo desse papel e se tornando de alguma maneira independentes. O problema é que quando saímos do papel de submissão, ainda acontece de nos condicionarmos e condicionarmos outras mulheres a outro papel submisso, porém um tanto quanto disfarçado de força, o papel da resiliência.
Mesmo nos dizendo feministas, para muitas de nós as mulheres ideais ainda seguem certos padrões. Alguns exemplos são o da mulher que é “melhor que isso”, ou seja, a mulher que passa por uma situação difícil, ignorando e seguindo em frente, ou o da mulher que sofre sim, mas de cabeça erguida. O que nós fazemos é disfarçar o quanto uma mulher pode ser atingida colocando-a  na posição daquela que suporta tudo mantendo-se digna.
A mulher que sai desse padrão de resistência cega quase sempre é considerada louca, imoral ou fraca, ela nunca é considerada uma mulher forte e admirável. Ainda nos falta, muitas vezes, um olhar compreensivo para a mulher que não sabe lidar com certas situações machistas de um jeito supostamente inabalável, com a mulher que acaba assumindo papéis que não aprovamos e que discordamos, com a mulher que sucumbe a fragilidade e submissão em um mundo que não apoia suas decisões e desejos.
Também assumimos muito o papel da mulher resiliente sem perceber que se trata de um papel que nos coloca em segundo plano, muitas vezes abdicamos de desejos próprios e enfrentamos dificuldades descabidas para nos encaixarmos ao que é esperado de nós e a imagem a qual queremos transmitir. Realmente, cada vez mais, nos tornamos e nos orgulhamos de sermos mulheres independentes e com voz ativa, tomamos as decisões familiares, temos controle sobre nossos planos profissionais, não nos deixamos abater pelos padrões estéticos. Só que ao mesmo que conquistamos esse poder sobre nós mesmas, algumas de nós ainda carregam o medo de que a imagem de esposa perfeita, de fortaleza que organiza a casa, de base para educação das crianças, de guerreira que enfrenta tudo e todos seja manchada entre família e amigos. Ainda enxergamos a imagem da mulher forte como aquela que não fraqueja nunca, com isso acabamos não permitindo que nenhuma de nós fraqueje.
Os relacionamentos abusivos são uma realidade para inúmeras mulheres, todo mundo conhece uma mulher que vive dentro de um relacionamento que não a agrada ou que não a faz bem, mas que ela não consegue terminar por diversos motivos. Dentro do feminismo discute-se com frequência sobre todos os tipos abusos que a mulher pode sofrer, abusos sexuais, físicos e psicológicos vindo de estranhos ou dos próprios companheiros, também fala-se bastante sobre como a mulher é sempre culpada independente da situação.
Só que as vezes sinto que essas discussões ficam apenas na teoria, nos grupos de Internet e nas frases feitas das redes sociais. Falamos sobre tudo isso e ao mesmo tempo ainda somos, as vezes inconscientemente, capazes de proteger homens em segundos e de rebaixar mulheres na mesma velocidade.
Mesmo nos dizendo feministas, perdoamos com facilidade e não questionamos o papai que foi abusador com a mamãe durante toda vida usando a desculpa de que ele foi um bom pai, e massacramos terrivelmente uma mulher, principalmente se mãe, se ela for infiel ou deixar os filhos. Tratamos como uma zero a esquerda uma mulher porque ela permite que um homem dite o que ela deve fazer e como uma pessoa sem caráter ou intelectualidade uma mulher que se hiperssexualiza. Ainda enchemos os olhos de lágrimas com a história do pai que criou cinco filhos sozinho depois de ser abandonado pela companheira, enquanto esculachamos uma mãe que arranjou um novo e estranho companheiro, mesmo que ela tenha passado toda a vida dando duro pelos filhos. Nós julgamos mulheres com facilidade, nos falta empatia, nos falta sororidade, nos falta compreensão com aquelas que não seguem nossos padrões de conduta, enquanto com os homens, as situações são compreendidas, superadas ou ignoradas. E diante de todo esse julgamento, ainda exigimos que as mulheres sejam fortes.
Desconfiamos e condenamos a mulher que deixa seu psicológico ser abalado, que toma atitudes erradas levada por um desespero desenganado, que assume o papel imoral sem ao menos resistir, que não é digna, que não é forte, que não é guerreira, que não aguenta as pancadas de pé. Queremos que toda mulher que sofre seja resiliente, suporte, não saia da linha. Mantemos, sem perceber, a ideia machista de “mulher de verdade” porque consideramos que o contrário foge dos padrões aceitos e/ou dos nossos valores morais. Nós reproduzimos machismo, nós coroamos um papel tão difícil que é o papel da resiliência.
Quando me pergunto para quem e para que serve meu feminismo, quero ter certeza de que ele também é sobre mulheres fragilizadas, que vivem em situações vulneráveis, com realidades diferentes da minha, quero ter certeza que ele vai servir  para que eu seja alguém que tenta ao menos compreender aquela que é julgada e condenada por todo o resto. Eu não entendo muitas atitudes de certas mulheres porque, na maioria da vezes, não são e nem seriam espelhos das minhas, mas a última coisa que eu farei, sendo eu feminista, é julgá-las como loucas, fracas, putas, safadas, sem-vergonhas ou imorais. A última coisa que eu farei é exigir força de alguém que eu não entendo, em uma situação que eu não vivo, ainda mais sendo esta pessoa uma mulher. Se não eu, feminista, quem a olhará com outros olhos? Não adianta eu dizer que minha luta é também pelas mulheres negras e periféricas para parecer altruísta, se muitas dessas mulheres estão em situação de vulnerabilidade e se portando de maneira que eu não aprovaria no meu cotidiano e eu sequer penso nisso. Não adianta eu botar cartaz no Facebook dizendo que “Somos todas putas”, se julgo como puta aquela que não faz o que eu acho que deveria ser feito, se, no fundo, ainda me utilizo desse conceito machista que ironicamente incorporo. Não adianta eu dizer que sei e levantar bandeira, se eu mesma não aplico o que digo.
Ainda cometo muitos erros, essa reflexão me atinge diretamente, todas nós estamos em processo de desconstrução e tentando levar essas ideias a frente, porém me questiono o tempo todo e vou seguir me questionando para que meu feminismo vá além do meu umbigo, para que eu lute, antes de qualquer coisa, pela libertação da mulher, a verdadeira libertação de toda e qualquer mulher.

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