terça-feira, 12 de janeiro de 2016

Sororidade preta: o sentimento antes do termo

Aquele olhar.... O olhar de reconhecimento. Que preta nunca o recebeu? Quando saímos do nosso ambiente de convívio e enxergamos lá fora alguém como nós, os olhares se cruzam e uma sensação boa invade o peito, a sensação de irmandade.
Antes de saber o que era sororidade, era isso que eu sentia sempre que via uma mulher negra. Mesmo ainda não me reconhecendo negra de fato, mesmo nem um pouco próxima das questões feministas e raciais, eu sempre vi em outra mulher negra algum tipo de proximidade.
Desde criança isso acontece, quando via outras crianças negras, principalmente meninas, meus olhos se acendiam como estrelas e eu olhava, daquela maneira indiscreta que as crianças costumam olhar, para o outro que era maravilhosamente ou assustadoramente, igual a mim. Sim, porque também assustava saber que existia outro alguém no mundo que se sentia como eu. É claro que como criança eu não tinha esclarecimento sobre esses pensamentos, eu apenas me sentia assim.
E mesmo depois de crescida, isso não se perdeu, é inevitável que no ônibus, na rua, no mercado ou em qualquer lugar meu olhar cruze-se com o de outra preta, como se fosse um código, como se fosse impossível não olhar uma para outra como se já nos conhecêssemos. Um sorriso, um tratamento diferente, uma facilidade de empatia, acabamos sempre nos relacionando de forma mais íntima.
As vezes a sensação de se enxergar no outro traz um misto de sensações, pode ser difícil se não é assim que você quer se reconhecer. Pra mim o processo de me reconhecer negra demorou, por conta do que esse reconhecimento carrega. Precisei esclarecer antes algumas questões, precisei saber o que significava tentarem me convencer que eu não era negra e sim “moreninha”, precisei compreender várias situações da minha vida e porque elas ocorreram, e foi aí que entendi que eu não estava sozinha, que nós eramos muitas e que não havia nada de errado nisso, que aquela sensação diferente que eu sentia quando encontrava uma outra mulher negra, era simplesmente uma busca pelo meu próprio eu. Aquelas mulheres que eu olhava na rua eram negras, as mulheres da minha casa eram negras e isso se tornou maravilhoso, porque enfim eu também podia SER.
Fui há um tempo atrás acompanhar uma amiga em uma escola para uma palestra sobre racismo, estávamos eu, ela e mais uma amiga, todas negras. Era uma escola de periferia e muitas crianças também eram negras. O olhar fraterno vindo das crianças foi instantâneo, e senti que aquilo não aconteceu só porque eramos adultas falando para toda classe, mas também porque havia um reconhecimento. Além da nossa fala, a nossa presença, a nossa imagem, como mulheres negras que se reconhecem como tal, fez muita diferença. As meninas se sentiram a vontade para se aproximar e falar sobre suas famílias, sobre suas experiências, sobre seus cabelos, foi bastante significativo pra mim.
Assim como também me marcou o olhar de uma menininha dias atrás numa pizzaria, ela parou o que estava fazendo quando eu cheguei, nós estávamos coincidentemente vestidas de maneira parecida, com o cabelo exatamente igual. Os olhos dela me seguiram por toda a pizzaria, acompanhando meus movimentos, a mãe, ao lado dela, imediatamente sorriu pra mim e nós soubemos o que tudo aquilo significava, mesmo sem termos trocado uma única palavra.
Logo que comecei a faculdade, sozinha, sem dividir com ninguém, comecei a me indagar sobre o que era ser negra. Todos os dias quando eu ia pegar o ônibus para ir até o estágio eu via uma moça. Ela era negra, muito bonita, vestia roupas lindas e tinha o cabelo mais lindo que eu já tinha visto. Diferente de mim, ela usava o cabelo natural, sempre pintado com cores vibrantes. Carregava algum tipo de pasta, ficava pensando, o que ela será que ela faz? Arquitetura? Moda? Alguma coisa legal, com certeza. O meu olhar para ela era aquele. Mesmo que eu não fosse como ela, eu gostaria de ser, ela me inspirava, tinha autoconfiança, tinha estilo e estava com a sua pasta buscando algum tipo de conhecimento, buscando fazer algo que ela gostava. O meu pensamento era basicamente: “Olha minha irmã ali do outro lado, ela pode ser o que ela quiser, então eu também posso”.
Passei anos observando essa moça pelas ruas, enquanto fui crescendo, fui evoluindo, fui cada vez mais me aproximando da minha identidade, refletindo sobre o que é ser uma mulher negra e reverberando esses pensamentos.
Dia desses vem uma surpresa, essa mesma moça que mudou tantas coisas em mim, mas com quem eu nunca tive a oportunidade de conversar, me deu um inesperado abraço e disse no meu ouvido: “Obrigada pelo o que você tem feito”. Eu não sei exatamente o que eu tenho feito, mas isso teve um significado enorme pra mim. Não pelo que me foi dito, mas por quem foi dito. Saber que posso chegar de alguma maneira a uma irmã me faz mais feliz.
Nós, mulheres negras, precisamos de mais representatividade, porque essa busca por olhares iguais aos nossos nada mais é que uma carência da sensação de pertencimento. Ainda somos apagas, excluídas e segregadas. Condicionadas a espaços subalternos, estereotipadas, diminuídas. Estamos nos piores lugares das estatísticas. A nossa irmandade inconsciente também nos faz mais fortes na caminhada. Um salve a todas as pretas que encontrei e encontrarei pelo caminho!

 

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