terça-feira, 26 de janeiro de 2016

Fui
Como as mulheres de minha família
Paciente
Com toda
Irresponsabilidade
Passividade
Mentira
Perdoei com a desculpa de que você
Nunca soube direito o que fazer
Quando no fundo eu sabia
Que você fazia tanta coisas
Sem que eu soubesse
Lembro disso
Quando me vem
A noitinha ou logo de manhã
Um tipo de buraco na boca do estômago
Um buraco pesado
Que amolece o corpo
Quando choro escondida no banheiro
Lágrimas que caem naturalmente ferozes
Como tempestades
Eu lembro
Que fiz minha parte
E tudo que eu ouvi foi
Silêncio
Seu ego me viu secar
Como aquelas rosas que a gente colocava em garrafas de cerveja usadas
Nós demoravamos pra tirá-las de lá
Porque elas pareciam belas
Mesmo mortas
Mesmo sem transmitir nenhum tipo de alegria
A gente enconde a verdade de nós mesmos
Quando é mais fácil
Ou quando dói

Pulei

Não existe nada pior do que viver em uma inércia cômoda. Nada é mais doloroso. Nem o fim. Nada pode ser mais doído do que levantar questões e não escutar respostas, do que conversar sozinho. Não faz bem nunca ouvir elogios, pior ainda é nunca ouvir putaria. É triste dormir sendo enganado. É decepcionante não ver esforço para que você sinta admiração, ou simplesmente para que você fique. Viver assim é como estar indeciso a beira de um penhasco ao lado de alguém que acha que você nunca vai ter coragem de pular.

terça-feira, 12 de janeiro de 2016

Sororidade preta: o sentimento antes do termo

Aquele olhar.... O olhar de reconhecimento. Que preta nunca o recebeu? Quando saímos do nosso ambiente de convívio e enxergamos lá fora alguém como nós, os olhares se cruzam e uma sensação boa invade o peito, a sensação de irmandade.
Antes de saber o que era sororidade, era isso que eu sentia sempre que via uma mulher negra. Mesmo ainda não me reconhecendo negra de fato, mesmo nem um pouco próxima das questões feministas e raciais, eu sempre vi em outra mulher negra algum tipo de proximidade.
Desde criança isso acontece, quando via outras crianças negras, principalmente meninas, meus olhos se acendiam como estrelas e eu olhava, daquela maneira indiscreta que as crianças costumam olhar, para o outro que era maravilhosamente ou assustadoramente, igual a mim. Sim, porque também assustava saber que existia outro alguém no mundo que se sentia como eu. É claro que como criança eu não tinha esclarecimento sobre esses pensamentos, eu apenas me sentia assim.
E mesmo depois de crescida, isso não se perdeu, é inevitável que no ônibus, na rua, no mercado ou em qualquer lugar meu olhar cruze-se com o de outra preta, como se fosse um código, como se fosse impossível não olhar uma para outra como se já nos conhecêssemos. Um sorriso, um tratamento diferente, uma facilidade de empatia, acabamos sempre nos relacionando de forma mais íntima.
As vezes a sensação de se enxergar no outro traz um misto de sensações, pode ser difícil se não é assim que você quer se reconhecer. Pra mim o processo de me reconhecer negra demorou, por conta do que esse reconhecimento carrega. Precisei esclarecer antes algumas questões, precisei saber o que significava tentarem me convencer que eu não era negra e sim “moreninha”, precisei compreender várias situações da minha vida e porque elas ocorreram, e foi aí que entendi que eu não estava sozinha, que nós eramos muitas e que não havia nada de errado nisso, que aquela sensação diferente que eu sentia quando encontrava uma outra mulher negra, era simplesmente uma busca pelo meu próprio eu. Aquelas mulheres que eu olhava na rua eram negras, as mulheres da minha casa eram negras e isso se tornou maravilhoso, porque enfim eu também podia SER.
Fui há um tempo atrás acompanhar uma amiga em uma escola para uma palestra sobre racismo, estávamos eu, ela e mais uma amiga, todas negras. Era uma escola de periferia e muitas crianças também eram negras. O olhar fraterno vindo das crianças foi instantâneo, e senti que aquilo não aconteceu só porque eramos adultas falando para toda classe, mas também porque havia um reconhecimento. Além da nossa fala, a nossa presença, a nossa imagem, como mulheres negras que se reconhecem como tal, fez muita diferença. As meninas se sentiram a vontade para se aproximar e falar sobre suas famílias, sobre suas experiências, sobre seus cabelos, foi bastante significativo pra mim.
Assim como também me marcou o olhar de uma menininha dias atrás numa pizzaria, ela parou o que estava fazendo quando eu cheguei, nós estávamos coincidentemente vestidas de maneira parecida, com o cabelo exatamente igual. Os olhos dela me seguiram por toda a pizzaria, acompanhando meus movimentos, a mãe, ao lado dela, imediatamente sorriu pra mim e nós soubemos o que tudo aquilo significava, mesmo sem termos trocado uma única palavra.
Logo que comecei a faculdade, sozinha, sem dividir com ninguém, comecei a me indagar sobre o que era ser negra. Todos os dias quando eu ia pegar o ônibus para ir até o estágio eu via uma moça. Ela era negra, muito bonita, vestia roupas lindas e tinha o cabelo mais lindo que eu já tinha visto. Diferente de mim, ela usava o cabelo natural, sempre pintado com cores vibrantes. Carregava algum tipo de pasta, ficava pensando, o que ela será que ela faz? Arquitetura? Moda? Alguma coisa legal, com certeza. O meu olhar para ela era aquele. Mesmo que eu não fosse como ela, eu gostaria de ser, ela me inspirava, tinha autoconfiança, tinha estilo e estava com a sua pasta buscando algum tipo de conhecimento, buscando fazer algo que ela gostava. O meu pensamento era basicamente: “Olha minha irmã ali do outro lado, ela pode ser o que ela quiser, então eu também posso”.
Passei anos observando essa moça pelas ruas, enquanto fui crescendo, fui evoluindo, fui cada vez mais me aproximando da minha identidade, refletindo sobre o que é ser uma mulher negra e reverberando esses pensamentos.
Dia desses vem uma surpresa, essa mesma moça que mudou tantas coisas em mim, mas com quem eu nunca tive a oportunidade de conversar, me deu um inesperado abraço e disse no meu ouvido: “Obrigada pelo o que você tem feito”. Eu não sei exatamente o que eu tenho feito, mas isso teve um significado enorme pra mim. Não pelo que me foi dito, mas por quem foi dito. Saber que posso chegar de alguma maneira a uma irmã me faz mais feliz.
Nós, mulheres negras, precisamos de mais representatividade, porque essa busca por olhares iguais aos nossos nada mais é que uma carência da sensação de pertencimento. Ainda somos apagas, excluídas e segregadas. Condicionadas a espaços subalternos, estereotipadas, diminuídas. Estamos nos piores lugares das estatísticas. A nossa irmandade inconsciente também nos faz mais fortes na caminhada. Um salve a todas as pretas que encontrei e encontrarei pelo caminho!

 

segunda-feira, 4 de janeiro de 2016

Meu feminismo é para quem? O mito da mulher forte

Diversas vezes faço questão de me fazer certas perguntas como: meu feminismo é para quem? Meu feminismo é para que? O que pretendo com a ideia de não culpabilizar mulheres ou de ter sororidade? A quem pretendo proteger ou apoiar? Pelos direitos de quem eu luto? O que, de fato, estou mudando em mim e na minha maneira de enxergar outra mulher quando me autodeclaro feminista?
Sou uma mulher negra, sei e vou percebendo quais são as opressões que me atingem, as leis que não me contemplam, como a sociedade se comporta quando se trata das minhas questões. Procuro também saber o que atinge as mulheres que estão a minha volta, as feministas com quais eu milito, minhas amigas e familiares.
Só que será que eu compreendo o que não faz parte da minha realidade? Entendo aquilo que sai fora dos meus padrões? Será que ainda não faço muito juízo de valor de realidades das quais eu não participo? Será que posso entender mulheres que não tem a mesma consciência que a minha?
A grande obrigação da mulher na sociedade patriarcal é ser submissa. Muitas mulheres, por inúmeros motivos, acabam se desprendendo desse papel e se tornando de alguma maneira independentes. O problema é que quando saímos do papel de submissão, ainda acontece de nos condicionarmos e condicionarmos outras mulheres a outro papel submisso, porém um tanto quanto disfarçado de força, o papel da resiliência.
Mesmo nos dizendo feministas, para muitas de nós as mulheres ideais ainda seguem certos padrões. Alguns exemplos são o da mulher que é “melhor que isso”, ou seja, a mulher que passa por uma situação difícil, ignorando e seguindo em frente, ou o da mulher que sofre sim, mas de cabeça erguida. O que nós fazemos é disfarçar o quanto uma mulher pode ser atingida colocando-a  na posição daquela que suporta tudo mantendo-se digna.
A mulher que sai desse padrão de resistência cega quase sempre é considerada louca, imoral ou fraca, ela nunca é considerada uma mulher forte e admirável. Ainda nos falta, muitas vezes, um olhar compreensivo para a mulher que não sabe lidar com certas situações machistas de um jeito supostamente inabalável, com a mulher que acaba assumindo papéis que não aprovamos e que discordamos, com a mulher que sucumbe a fragilidade e submissão em um mundo que não apoia suas decisões e desejos.
Também assumimos muito o papel da mulher resiliente sem perceber que se trata de um papel que nos coloca em segundo plano, muitas vezes abdicamos de desejos próprios e enfrentamos dificuldades descabidas para nos encaixarmos ao que é esperado de nós e a imagem a qual queremos transmitir. Realmente, cada vez mais, nos tornamos e nos orgulhamos de sermos mulheres independentes e com voz ativa, tomamos as decisões familiares, temos controle sobre nossos planos profissionais, não nos deixamos abater pelos padrões estéticos. Só que ao mesmo que conquistamos esse poder sobre nós mesmas, algumas de nós ainda carregam o medo de que a imagem de esposa perfeita, de fortaleza que organiza a casa, de base para educação das crianças, de guerreira que enfrenta tudo e todos seja manchada entre família e amigos. Ainda enxergamos a imagem da mulher forte como aquela que não fraqueja nunca, com isso acabamos não permitindo que nenhuma de nós fraqueje.
Os relacionamentos abusivos são uma realidade para inúmeras mulheres, todo mundo conhece uma mulher que vive dentro de um relacionamento que não a agrada ou que não a faz bem, mas que ela não consegue terminar por diversos motivos. Dentro do feminismo discute-se com frequência sobre todos os tipos abusos que a mulher pode sofrer, abusos sexuais, físicos e psicológicos vindo de estranhos ou dos próprios companheiros, também fala-se bastante sobre como a mulher é sempre culpada independente da situação.
Só que as vezes sinto que essas discussões ficam apenas na teoria, nos grupos de Internet e nas frases feitas das redes sociais. Falamos sobre tudo isso e ao mesmo tempo ainda somos, as vezes inconscientemente, capazes de proteger homens em segundos e de rebaixar mulheres na mesma velocidade.
Mesmo nos dizendo feministas, perdoamos com facilidade e não questionamos o papai que foi abusador com a mamãe durante toda vida usando a desculpa de que ele foi um bom pai, e massacramos terrivelmente uma mulher, principalmente se mãe, se ela for infiel ou deixar os filhos. Tratamos como uma zero a esquerda uma mulher porque ela permite que um homem dite o que ela deve fazer e como uma pessoa sem caráter ou intelectualidade uma mulher que se hiperssexualiza. Ainda enchemos os olhos de lágrimas com a história do pai que criou cinco filhos sozinho depois de ser abandonado pela companheira, enquanto esculachamos uma mãe que arranjou um novo e estranho companheiro, mesmo que ela tenha passado toda a vida dando duro pelos filhos. Nós julgamos mulheres com facilidade, nos falta empatia, nos falta sororidade, nos falta compreensão com aquelas que não seguem nossos padrões de conduta, enquanto com os homens, as situações são compreendidas, superadas ou ignoradas. E diante de todo esse julgamento, ainda exigimos que as mulheres sejam fortes.
Desconfiamos e condenamos a mulher que deixa seu psicológico ser abalado, que toma atitudes erradas levada por um desespero desenganado, que assume o papel imoral sem ao menos resistir, que não é digna, que não é forte, que não é guerreira, que não aguenta as pancadas de pé. Queremos que toda mulher que sofre seja resiliente, suporte, não saia da linha. Mantemos, sem perceber, a ideia machista de “mulher de verdade” porque consideramos que o contrário foge dos padrões aceitos e/ou dos nossos valores morais. Nós reproduzimos machismo, nós coroamos um papel tão difícil que é o papel da resiliência.
Quando me pergunto para quem e para que serve meu feminismo, quero ter certeza de que ele também é sobre mulheres fragilizadas, que vivem em situações vulneráveis, com realidades diferentes da minha, quero ter certeza que ele vai servir  para que eu seja alguém que tenta ao menos compreender aquela que é julgada e condenada por todo o resto. Eu não entendo muitas atitudes de certas mulheres porque, na maioria da vezes, não são e nem seriam espelhos das minhas, mas a última coisa que eu farei, sendo eu feminista, é julgá-las como loucas, fracas, putas, safadas, sem-vergonhas ou imorais. A última coisa que eu farei é exigir força de alguém que eu não entendo, em uma situação que eu não vivo, ainda mais sendo esta pessoa uma mulher. Se não eu, feminista, quem a olhará com outros olhos? Não adianta eu dizer que minha luta é também pelas mulheres negras e periféricas para parecer altruísta, se muitas dessas mulheres estão em situação de vulnerabilidade e se portando de maneira que eu não aprovaria no meu cotidiano e eu sequer penso nisso. Não adianta eu botar cartaz no Facebook dizendo que “Somos todas putas”, se julgo como puta aquela que não faz o que eu acho que deveria ser feito, se, no fundo, ainda me utilizo desse conceito machista que ironicamente incorporo. Não adianta eu dizer que sei e levantar bandeira, se eu mesma não aplico o que digo.
Ainda cometo muitos erros, essa reflexão me atinge diretamente, todas nós estamos em processo de desconstrução e tentando levar essas ideias a frente, porém me questiono o tempo todo e vou seguir me questionando para que meu feminismo vá além do meu umbigo, para que eu lute, antes de qualquer coisa, pela libertação da mulher, a verdadeira libertação de toda e qualquer mulher.