quarta-feira, 24 de junho de 2015

Eu me lembro

Eu me lembro de desde muito pequena ter que lidar com injurias raciais. Eu me lembro de perguntar para minha mãe muito cedo, muito cedo mesmo, tipo com uns cinco ou seis anos, como responder aos meus coleguinhas que me rechaçavam por conta da minha cor. Eu me lembro dela dizendo pra eu chamá-los de "baratas descascadas". Eu me lembro de saber que esse xingamento não doeria tanto neles como doía em mim o que eles me diziam, mas mesmo assim eu me defendia. Eu me lembro de, mesmo que nunca tenha sido dito com todas as letras, eu ter consciência de que ser negra talvez não seria uma coisa lá muito boa. Eu me lembro de querer muito ser igual as minhas amiguinhas brancas, ter sua cor de pele, seu cabelo. Eu me lembro de ter chegado chorando da escola, porque mesmo me destacando e sendo a preferida da professora, eu não tinha sido escolhida para ser a princesa da apresentação final. Eu me lembro de que eu seria a rainha das bruxas. Eu me lembro de questionar a minha mãe sobre isso e ela não ter resposta. Eu me lembro de que depois de minha mãe conversar com a escola, professora e diretora, todos me disseram que aquele também era um papel importante. Eu me lembro da princesa, de seus olhos azuis, de seu cabelo loiro. Eu me lembro de que a coloração do lápis "cor de pele" não se aproximava da cor da minha pele e eu não entendia muito bem. Eu me lembro de ter ido até a casa de uma coleguinha fazer um trabalho em grupo, e que ela e outra amiguinha do grupo em um certo momento começaram a rir bastante de mim, e quando eu entendi o motivo, fui embora e nunca contei nada a minha família. Eu me lembro de uma desconhecida que mandava eu sair de perto em uma festa junina para que eu não encostasse "aquele cabelo" na comida dela. Eu me lembro de gostar muito que minhas tias trançassem o meu cabelo, assim ele não parecia tão armado. Eu me lembro de não correr muito nas festinhas, assim meu cabelo não ficava tão armado. Eu me lembro da primeira vez que alisei o meu cabelo. Eu me lembro de um colega de classe que me humilhou durante dois anos por conta da minha boca. Eu me lembro de todos se sentirem bastante desconfortáveis com a forma claramente racista que ele falava aquilo. Eu me lembro de que mesmo assim todos permaneciam calados, inclusive eu. Eu me lembro da minha felicidade quando diziam que eu não era negra, eu era moreninha. Eu me lembro de que até certo tempo os meninos do clube nunca me escolhiam. Eu me lembro de uma menina do clube fazer questão de me dizer que o irmão dela nunca pegaria aquela... ela riu. Eu me lembro dela dizendo que a mãe dela detestava que ela andasse com aquelas "neguinhas", no caso eu e um grupo de amigas minhas da época. Eu me lembro de ser a única pessoa de rastafari em um colégio pago. Eu me lembro de ser uma das únicas pessoas negras em um colégio pago. Eu me lembro do quanto as pessoas da minha cor eram inferiorizadas no colégio, Eu me lembro de como elas eram reduzidas a isso. Eu me lembro de, em certo ponto da adolescência, dizer não ter problemas com isso, pra poder me auto-afirmar, pra poder me sentir mais forte, e então, comecei a fazer piadas comigo mesma do tipo: "Ah! Isso é só porque eu sou preta!",  "Ah! Eu só podia ser preta!". Eu me lembro de que assim eu não parecia excluída e nem chata.
Eu me lembro de na semana passada ter visto uma garota negra se aproximar de uma roda de adolescentes pra cumprimentar alguém, e no segundo em que ela se virou, sua cor ter se tornado motivo de piada. Eu me lembro de no mês passado eu ter ido a um museu e um homem ter me dito que meu cabelo tamparia todas as obras de arte, como se quisesse dizer: "como você tem coragem de andar com isso?". Eu me lembro de há poucos anos um cara ter me dito que eu era a primeira pretinha que ele pegava, em um tom irônico, como se eu fosse uma espécie exótica e rara e eu pensei que provavelmente aquela observação já devia ter sido piada entre ele e os amigos.
Eu me lembro de todas essas coisas. Só que sei que todos esquecem todos os dias do porquê. O negro além de excluído, marginalizado, prejudicado pela história, ainda é inferiorizado nessas "pequenas" atitudes. Ninguém se lembra de olhar pra trás e perguntar: por que isso ainda acontece? Ninguém se pergunta porque têm tanta vontade de perpetuar isso, de punir pessoas negras por conta de sua cor e disfarçar isso de brincadeira, opinião, gosto. Quase nenhum branco se lembra de que nunca passou por isso e que não tem a menor propriedade pra falar sobre. Poucos negros tem a consciência de que passar por isso é consequência de um longo sistema preconceituoso e opressor que nos diminui perante aos demais.

As pessoas têm coragem de olhar nos meus olhos e me dizerem que não existe mais racismo. Que isso é coisa do passado, que não sou mais escravizada e nem violentada, e que eu exagero. Que é coisa da minha cabeça. Que eu incentivo atitudes racistas falando tanto disso. Que eu tenho preconceito comigo mesma. Que eu me vitimizo por relatar a minha própria história. A minha própria história!
Eu me silenciei até agora e, vejam só, nada disso deixou de acontecer. E vai continuar acontecendo, pois, assim como eu, as crianças já nascem em uma sociedade de estrutura racista e sabem inconscientemente desde cedo como a coisa funciona. E se tornam adultos opressores e oprimidos. Por isso eu não tenho vergonha de me empoderar e de empoderar crianças e mulheres negras como eu. Eu não ligo se essa expressão "empoderamento" incomoda alguém. Eu não ligo que o fato de eu andar por aí afirmando a minha negritude e o orgulho de ser negra incomode alguém. Eu faço questão que meu cabelo esteja armado e que meu turbante seja motivo pra que a pessoa não se recolha a sua insignificância e venha até a mim debochar. Eu vou continuar. Eu vou continuar falando sobre assuntos "chatos". Eu vou continuar cutucando a ferida. E vou continuar lutando por quem se feriu.

PORQUE EU ME LEMBRO E NÃO PERMITO QUE NINGUÉM ESQUEÇA.