segunda-feira, 29 de setembro de 2014

"Não sei se a vida é pouco ou demais pra mim.
Não sei se sinto demais ou de menos, não sei
Se me falta escrúpulo espiritual, ponto-de-apoio na inteligência,
Consanguinidade com o mistério das coisas, choque
Ou se há outra significação para isto mais cômoda e feliz.

Seja o que for, era melhor não ter nascido,
Porque, de tão interessante que é a todos os momentos,
A vida chega a doer, a enjoar, a cortar, a roçar, a ranger
A dar vontade de dar gritos,de dar pulos, de ficar no chão, de sair
Para fora de todas as casas, de todas as lógicas e de todas as sacadas
E ir ser selvagem para a morte entre árvores e esquecimentos,
Entre tombos, e perigos e ausência de amanhãs,
E tudo isto devia ser qualquer outra coisa mais parecida com o que eu penso,
Com o que eu penso ou sinto, que eu nem sei qual é, ó vida.

Cruzo os braços sobre a mesa, ponho a cabeça sobre os braços,
E preciso querer chorar, mas não sei ir buscar as lágrimas...
Por mais que eu me esforce por ter uma grande pena de mim, não choro
Tenho a alma rachada sobre o indicador curvo que lhe toca...
Que há de ser de mim? Que há de ser de mim?

[...]

Assim fico, fico... Eu sou o que sempre quer partir,
E fica sempre, fica sempre, fica sempre,
Até à morte fica, mesmo que parta, fica, fica, fica...

Torna-me humano, ó noite, torna-me fraterno e solícito.
Só humanitariamente é que se pode viver.
Só amando os homens, as acções, a banalidade dos trabalhos.
Só assim - ai de mim! -, só assim se pode viver.
Só assim, ó noite, e eu nunca poderei ser assim!"

(Álvaro de Campos)

Quando você não pode colocar em palavras o que há dentro de você, Fernando Pessoa, com certeza, pode. E isso sempre esteve dentro de mim. A insatisfação com tudo o que satisfaz. A inadequação ao que é adequado. A vontade de viver todo prazer e toda a desgraça do mundo, contanto que eu viva tudo. Essa sensação é esse poema. Esse poema sou eu.

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