domingo, 29 de março de 2015

Nua

Todos esses anos postei aqui meus sentimentos em verso e prosa, algumas vezes em aquarela e nanquim. Antes, fazia isso as escondidas, escrevia tudo só pra mim, como uma consciência que conversa por meio de palavras escritas. Aqui eu organizava meus pensamentos, botava para fora as emoções. Depois resolvi, não entendo muito bem até hoje o porquê, abrir tudo isso a outras pessoas, primeiro os meus amigos viram, depois comecei a divulgar em redes sociais, vez em quando alguém comentava algo, lia, mas no final das contas eram alguns amigos mesmo que continuavam se interessando. Estes também começarem a desenvolver seus próprios blogs, a escrever seus textos, e eu comecei também a me interessar por blogs alheios. Todos esses textos e pensamentos se limitavam a isso, a uma troca entre eu e meus amigos.
Sempre admirei saraus de poesia, mas nunca pude ir a um. Sarau sempre foi algo mais do meio underground, de grupos e coletivos específicos que eu sempre me interessei, mas também nunca participei. Até que comecei a conhecer os saraus periféricos, o Sarau da Cooperifa foi o primeiro que li sobre, nunca pude ir até lá, e o máximo que participei foi da apresentação de alguns integrantes na Bienal do Livro em São Paulo. Foi emocionante ver que aquela gente tinha muito pra falar e sabia como ninguém fazer isso. Há pouco mais de um ano, um sarau cujos participantes também habitam as periferias da minha cidade surgia aqui. Conheci esse sarau, participei como espectadora encantada de poucos, porque os horários em que aconteciam eram sempre complicados pra mim. Até que dei a ideia à minha chefe de que trouxesse esse sarau, o Sarau Urbano, até meu local de trabalho para apresentação em nossa Feira do Livro. Foi incrível. E foi quando eu tive a ideia de participar, dessa vez ativamente, recitando poesias.
Era a primeira vez que eu ia mostrar o que saía de dentro de mim. Meus sentimentos, minhas emoções, meus devaneios seriam não apenas escritos, ou divulgados em forma de um semi-anonimato onde há uma distância confortável do leitor. Dessa vez eles seriam falados, exprimidos pela minha própria voz. Fiquei em pânico. Desenvolvi  na vida adulta uma certa tensão em falar em público, me ferrei em vários seminários da faculdade porque não conseguia repassar o conteúdo aos meus colegas. E falar em público coisas de minha própria autoria seria um peso maior ainda. Foi assustador, mas tomei coragem e fui. Recitei uma poesia de um amigo, e uma que eu mesma fiz pra ele. Foi algo bastante particular, li tudo, falei baixo em um microfone, e tremi feito uma vara verde. Eu tive a impressão de que as pessoas não estavam entendendo absolutamente nada do que eu falava e de que eu ia desmaiar de vergonha, a adrenalina me fez quase passar mal, mas falei. As pessoas bateram palma e foi isso.
Eu sempre me considerei uma pessoa de sorte, algum tempo se passou e eu conheci pessoas incríveis, estou tendo experiências que vêm me completando, fazendo as coisas fazerem mais sentido pra mim, e a vida, que sempre foi cheia de lacunas, foi sendo preenchida, passei a me sentir menos perdida. Comecei a fazer parte de um projeto de que quero falar um dia com detalhes, o "Maria Vai com as Outras", que me fez conhecer meninas maravilhosas, que também têm seus blogs e que querem levar sua escrita a público. Nesse projeto eu posso desenvolver algo que eu amo tanto que é a ilustração, outra forma de texto. Também me simpatizo há algum tempo com questões feministas e venho, cada vez com mais força e coragem, construindo minha identidade negra. A partir de um conselho de uma mulher que admiro, direcionado a nós do "Maria Vai com as Outras", pude perceber que o Sarau Urbano precisava de falas de mulheres, e acima de tudo, de falas de mulheres com ideias parecidas com as minhas. Eu sabia que essas mulheres já estavam lá, e que estavam se movimentando, e eu quis fazer parte daquilo.
Mas aí, para fazer parte, onde é que eu enfiaria a minha maldita vergonha? Dessa vez eu não falaria algo tão particular, era um discurso carregado de questões políticas e sociais e um sentimento muito pessoal que fervia em mim. Havia muitas coisas engasgadas que eu queria gritar pro mundo. Mas é difícil gritar pro mundo não sendo muito envolvida com o local onde você grita. É difícil colocar pra fora um discurso de uma vivência feminina em ambiente frequentado em sua maioria por homens. É muito intimidador. É difícil falar para mulheres tão empoderadas, para jovens tão esclarecidos, para gente com a cabeça tão inquieta quanto a sua.
Escrevi a poesia, ensaiei mais de mil vezes, ensaiei na sala, no quarto, no chuveiro, no espelho, no bar para os meus amigos mais próximos depois de muita cerveja. Mas eu sabia que na hora iria me dar pânico, que eu ia tremer tudo de novo, que podia me dar um branco mesmo com a poesia em mãos. Achava que ninguém ia gostar, que os caras iriam se sentir incomodados com a minha fala e que eu não iria atingir o meu objetivo de fazer as pessoas refletirem. Quase desisti. Mas eu tinha que falar. Tinha. Meu marido disse, você TEM que falar, meus amigos disseram. Era algo importante. E eu queria falar mais do que só a poesia.
Cheguei ao sarau atrasada, esbaforida porque saí direto do trabalho. Em minutos era a minha vez. Me chamaram: "Anna". Eu fui até lá na frente, olhei as pessoas... Um nervosismo imenso invadiu todo o meu corpo. E foi tirando aos poucos a minha roupa, as minhas roupas íntimas, me deixando completamente nua. Depois arrancava a minha pele, os meus nervos, os meus órgãos, os meus ossos, e só sobrava a minha voz. Esta fez uma pequena fala de como se sentia uma mulher na sociedade em que vivemos. Comecei a poesia. Eu olhava em todos os rostos, todos eles estavam embaçados e olhando para mim. Eu dizia os versos, olhando de vez em vez no papel, e podia escutar as expressões de surpresa, de admiração, vindas de vozes masculinas e de femininas. Senti que minha mão tremia com velocidade o papel, segurei com as duas mãos para dar mais segurança, finalmente terminei a poesia. Levantei o rosto e vi uma mulher negra e empoderada de pé, batendo palmas e com um grande sorriso no rosto. Vi mulheres felizes e representadas, vi homens admirados, vi os olhos de uma amiga marejados e vi meu marido que me esperava com um beijo e uma cerveja. Minha adrenalina baixou e minha cabeça voltou para o mundo real, mas eu continuei em êxtase. A minha verdade tinha atingido pessoas de uma maneira que eu nunca havia esperado. Me perguntava como aquelas pessoas que sempre me arrepiavam declamando suas poesias poderiam fazer aquilo, que era tão difícil pra mim, com tamanha naturalidade. A repercussão daquele momento, palavras tão bonitas que ouvi e li depois do que eu falei me trouxeram alívio, muita emoção e gratidão, e mais coragem para me despir mais vezes nos saraus de poesia.

A arte percorre nossas veias, controla nossa respiração, faz com que a gente se sinta vivo. A arte é oxigênio do mundo.

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